Fotos reproduzidas do site Encontra Aracaju e postadas pelo blog para ilustrar o presente artigo.
Texto publicado originalmente no Perfil do Facebook de Clara Angelica Porto, em 1 de abril de 2022
Senta que lá vem mais memória:
Por Clara Angelica Porto
Quando criança, uma das coisas que mais me encantavam era ir para a feira de Aracaju aos sábados pela manhã, no mercado Thales Ferraz. Lá tudo era diferente da cidade, embora fique no centro. No caminho, o cheiro forte de café levava a vendedoras de frutas espalhadas pelas calçadas. Mas era dentro do mercado que existia a magia. Tinha que saber andar por lá, saber o caminho da farinha, das galinhas, dos peixes e carnes, dos queijos e requeijões, das ervas. Mas em caso de confusão, podia-se deixar guiar pelos cheiros fortes e achar tudo pelo nariz. Minha mãe era esperta e negociava com todos. Freguesia certa tem direitos e leva o que há de melhor. Para mim sempre cabia uma latinha de mangaba para comer sem lavar (purgante de óleo de rícino duas vezes por ano dava conta das lombrigas que pudessem se instalar), beijus molhados, macasados e saroios, as canjicas e mugunzás. E ainda havia o mundo das bonecas de pano, dos móveis de boneca de madeira, ioiôs, piões, cestas, redes; tudo que trazia prazer e conforto tinha na feira e eu sempre voltava para casa com um novo mimo, nem que fosse um novo par de sandálias daquele couro que cheirava gostoso e fedia ao mesmo tempo; o meu encanto pelas sandálias da feira era a ousadia das cores, que só anos depois passaram a ser usadas pela indústria de sapatos finos, que sempre ofereciam as mesmas cores sóbrias e clássicas, só abrindo exceção para o vermelho, rosa e azul bebê.
Mas eram os vendedores de rua que mais me fascinavam. De manhã a gente ouvia a chegada deles, entoando os pregões melodiosos que ainda hoje tenho na memória. ‘Amolador de tesoura...’, ‘Ói a banana... Banana...’, ‘Ói o beijuuu... beiju moiado, saroio e macasado...’, ‘Ói o pirulito, enfiado no palito, chupa pobre, chupa rico, ‘inda sobra pirulito’, ‘Rolete de cana....’, ‘Cavaco chinês, ói o cavaco chinês...’, Corria para pegar meu dinheirinho e gritar com força “Beiju molhado!!!” para fazer minha comprinha do dia. A vendedora descia o cesto trançado a mão da cabeça para oferecer a mercadoria. Aproveitava para desfazer a rodilha e limpar o suor do rosto com o pano e logo torcê-lo e arrumar o caracol para proteger a cabeça do cesto pesado. As rodilhas, que chamavam ‘rudia’, eram feitas com pano branco e algumas tinham um pedaço de pano solto para proteger a fronte do sol. Fazer uma rudia daquelas requeria técnica e esmero. Rudia que se prezasse tinha que ser no ponto, firme o suficiente para não soltar e macia para suavizar o impacto do peso carregado na cabeça por quilômetros a fio, no ganha pão do dia a dia. Toda rudia era branquinha, alvíssima e eu conseguia até sentir o cheiro do anil e imaginar as rudias quarando ao sol em alguma pedreira ou capim por trás de alguma casinha. Panos limpíssimos e brancos forrando os cestos davam o atestado da limpeza do beiju molhado, que vinha embrulhado em folhas de bananeira – que coisa chic que era comer coisas gostosas feitas na madrugada por mãos cuidadosas e embrulhadas em folhas.
Esse comércio informal onde pessoas geralmente negras e mulatas vinham trazer seus produtos na porta das casas dos brancos, ou quase brancos, mantinha famílias inteiras que produziam nos quintais dos casebres onde viviam nos bairros mais afastados e pobres da cidade. Muitos vinham do interior, em caminhões, carregados com seus cestos cheios do que plantavam em suas rocinhas para ganhar o pão do dia. Eram pobres, mas viviam com dignidade da venda do que plantavam e do que faziam em seus fogões de lenha para vender na cidade. Existia pobreza, sim, mas não existia miséria no Aracaju da minha infância. Nada era industrializado, tudo era artesanal e muito pessoal e natural.
Eu vivia tirando prosa com todos os fregueses, porque freguês era quem vendia e quem comprava, e assim todos se tratavam. Sabia se tinha filhos, onde morava, se vinha de fora ou dos bairros mais distantes. Sabia até que o vendedor da melhor farinha da feira, que vinha de Itabaiana e deixava a gente sentar nos sacos fechados de farinha para descansar, tinha um filho que lhe dava o maior desgosto, porque gostava de se vestir de mulher. Às vezes ficava ali descansando e brincando de futucar o cu das galinhas com o pauzinho do picolé com meu irmão, que tinha cada ideia e eu seguia todas, sob a guarda do vendedor de farinha, enquanto mamãe corria para buscar alguma coisa que estava faltando.
Quando mamãe voltava, acabava de encher o cesto e era hora de ir pra casa. Não sem antes acertar um carregador, algum adolescente também preto ou mulato, que de pés descalços levava o cesto pesado com o alimento dos brancos na cabeça. Caminhávamos todos de volta e eu sempre morria de pena do menino carregador e mamãe explicava que ele precisava ganhar o dinheirinho dele. Depois foram aparecendo carregadores mais sofisticados, que tinham carrinho de mão. Mas isso só aconteceu bem depois, quando eu já nem ia mais tanto à feira.
Nada disso desapareceu em Aracaju. O mercado ainda está lá, modernizado, reformado, mas conserva muito do velho espírito. Ainda existe freguês e freguesa que jogam conversa fora. Minha freguesa de verdura, eu já adulta, fazia um cozido cheiroso, ela pegava osso com alguma carne com o açougueiro e tirava camadas dos repolhos, jogava batata, tudo que tivesse no balcão e fazia um cozido num fogareiro de lata, em uma panela de lata. O cheiro era entontecedor, eu não resistia, até que um dia ela me ofereceu e fiquei freguesa do cozido também, que comia esfomeada sentada num tamborete. Ninguém fazia um cozido igual, só a verdureira dos peitos fartos e cara de mãe.
Ainda se encontra os repentistas, os sanfoneiros, ainda se faz forró e ainda se vê os mastigadores de fumo de corda no mercado. Mas ficou tudo mais organizado, mais para mostrar ao turista, tem muito telefone celular e menos conversa miúda. Quando volto a Aracaju e escuto o pregão de algum vendedor ambulante, aqui e ali, corro para ver se vejo e nem sempre consigo; são tão poucos os resistentes e como ficou mais difícil vender para prédios de 12 andares.
E eu, que tanto mudei e me mudei, ainda sou a mesma do fascínio da feira de Aracaju. Porque com todas as mudanças, a gente continua igual ao que sempre foi, levando o que é por onde vai.
Texto reproduzido do Facebook/Clara Angelica Porto
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