Publicado originalmente no site do Portal Fan F1, em 29/03/2019
Artesãs de renda irlandesa querem assumir o protagonismo da
arte secular
Por Célia Silva
A renda irlandesa de Divina Pastora (SE) é patrimônio
cultural do Brasil reconhecido pelo Iphan e conhecida mundialmente. Peças
exclusivas produzidas por rendeiras de Sergipe já vestiram modelos na Europa e
figuraram em vitrines fashions do país levadas por mãos de atravessadores.
Agora, as rendeiras querem assumir o protagonismo do negócio e uma rede de
apoio formada pelo Iphan, Sebrae, e outros órgãos está se formando, tendo as
artesãs à frente, para a retomada do desenvolvimento dessa arte única e secular
transmitida de geração a geração.
CCBA fica na cidade de Luanda, em Angola. Foto: CCBA
E a oportunidade mais recente para as artesãs se tornarem
peças principais na cadeia produtiva deste artesanato sofisticado veio do
continente africano. No final do ano passado, a Casa de Cultura Brasil-Angola
(CCBA), em Luanda, na Angola, convidou as rendeiras para uma exposição
exclusiva.
“Não temos dinheiro, vamos precisar de patrocínio, mas já
estamos produzindo”, disse a presidente da Associação das Rendeiras de Divina
Pastora, Maria José Souza. “Já temos o patrocínio”, assegurou a superintendente
do Instituto do Patrimônio Histórico Nacional em Sergipe (Iphan-SE), Katarina
Aragão, uma entusiasta da causa.
Trabalho delicado e significativo
Yérsia Souza faz doutorado em Luanda e sugeriu a mostra.
Foto: pessoal
A ideia da exposição surgiu da antropóloga Yérsia Souza de
Assis, que está em Luanda fazendo doutorado em antropologia pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC). “Fiz algumas atividades na CCBA e sugeri uma
exposição da renda irlandesa de Divina Pastora, que é patrimônio cultural. Disse
que é uma tradição passada de geração a geração”, explicou a doutoranda. No dia
que sugeriu, ela usava uma blusa de renda irlandesa, que chamou a atenção da
diretora da Casa de Cultura.
A diretora da CCBA é brasileira, mora em Angola há quatro
anos e disse que não conhecia a renda irlandesa. “Foi uma surpresa conhecer um
trabalho tão delicado e significativo”, exclamou Nídia Klein.
Ela explicou que a ideia é realizar a mostra no final do
ano, na capital da Angola. O objetivo, segundo Klein, é mostrar ao povo
angolano e aos estrangeiros que vivem nesse país da costa ocidental do
continente africano a diversidade da cultura brasileira por meio da renda
irlandesa.
Mas, há dificuldades a serem superadas, diz Klein. Segundo
ela, o país é cheio de particularidades e há detalhes a serem respeitados e
bastante alinhavados até a ideia ser concretizada. “Luanda é a cidade mais cara
do mundo e isso é um dos entraves que podem se tornar ponto de dificuldade para
exibirmos o trabalho que elas realizam”, ressaltou.
Freiras missionárias ensinaram a arte
Maria José, presidente da Associação das Rendeiras de Divina
Pastora.
Foto: Fan F1
Mas, as rendeiras são mestras no saber da arte de fazer a
renda e de superar desafios. “Vamos levar 80 peças, entre toalhas, blusas, vestidos,
saias e acessórios”, afirmou Maria José com muita determinação enquanto tecia
uma das peças que irão compor o acervo da mostra.
A renda irlandesa chegou em Sergipe pelas mãos de freiras
missionárias europeias na época dos grandes engenhos de açúcar, no Período
Colonial. As religiosas ensinaram a arte às damas da região e do antigo povoado
Ladeira (hoje Divina Pastora).
Em meados do século XX, a técnica se fortaleceu entre as
mulheres pobres, possibilitando outras formas de ganhos econômicos além do
trabalho nos canaviais. Foi assim com a bisavó e avó de Maria José rendeiras de
“mão cheia” de Divina Pastora. “Minha mãe aprendeu com elas e eu aprendi com
minha mãe” conta a atual presidente da Associação para Desenvolvimento da Renda
Irlandesa de Divina Pastora de Sergipe (ASDRIDP-SE).
Artesanato de luxo e sofisticação
Toalhas de mesa, colchas são peças de enxoval confeccionadas
por mãos talentosas em Sergipe. Foto: Sebrae
As grandes peças em renda irlandesa são caras. As colchas de
cama chegam a custar R$ 6 mil, as toalhas de mesa, R$ 3 mil e uma blusa ou saia
é vendida em média por R$ 600. “A renda
irlandesa é uma renda de agulha que tem como base o lacê, o que deixa a peça
encorpada, com brilho e com um caimento firme, com mais volume e com muita
sofisticação. É uma renda original e cara e de grande potencial para a moda. O
trabalho é minucioso, que gasta metros e metros de fio, com técnica exclusiva”,
explica a designer de moda, Bruna Marques.
Nalva, de Laranjeiras, já fez um blazer para
a ex-presidente
Dilma.
Foto: Fan F1
Maria de Fátima Menezes, de Divina Pastora, fez um vestido
para uma noiva que se casou na Bélgica e Ednalva Batista dos Santos, mestra
rendeira do polo da cidade de Laranjeiras, fez o blazer que a então prefeita do
município, Ione Sobral, deu de presente à ex-presidente Dilma, em passagem por
Sergipe.
Mas, nos últimos anos as artesãs repensaram as peças para se
ajustarem ao mercado em crise. Produzem as tradicionais colchas, vestidos,
blusas e coletes, mas principalmente pequenos acessórios. “Fazemos brincos,
colares, porta-moedas e até marcadores de livros”, disseram Katiane e Adenir,
rendeiras da cidade de Maruim num dia de exposição num evento do Iphan em
Aracaju.
Rede de apoio à renda
Katarina Aragão: Estamos traçando uma grande
rede para
formação de renda.
Foto Fan F1
Uma grande rede de apoio vem sendo formada para salvaguardar
a renda irlandesa de Sergipe pensar intervenções para retomar as vendas das
grandes peças que no final da década de 90 cresceram exponencialmente pelas
mãos de atravessadores. “As rendeiras estão saindo de uma época de muita
exploração por parte de atravessadores para assumir o lugar de donas de um
saber único e do próprio negócio”, afirmou a superintendente do Iphan.
Katarina Aragão entende que as rendeiras hoje se reconhecem
o quanto foram exploradas e passam agora a querer se apropriar de seus
negócios. Mas ela ressalta que para isso é preciso o esforço grande de uma rede
de apoio para instrumentalizá-las e devolver-lhes a autoestima. “Elas precisam
se identificar como únicas detentoras desse saber, que é o saber-fazer da renda
irlandesa. Neste momento estamos traçando uma grande rede de políticas de
intervenções de trabalho, cursos de moda, enfim, tecendo uma grande rede para
gerar renda”, disse.
O Comitê Gestor da Salvaguarda da Renda que está sendo
criado é formado pelo Iphan, Museu da Gente Sergipana, Sebrae, Sesc/Senac,
prefeituras dos polos das rendas e pelas rendeiras.
Núcleos reúnem mestras para transmitir o saber
“Já estamos produzindo”, dizem as rendeiras de Divina
Pastora.
Foto: Fan F1
Em outubro do ano passado, 10 máquinas trançadeiras
adquiridas pelo Iphan, por meio das ações do Comitê de Salvaguarda, foram
entregues às rendeiras de Divina Pastora e demais núcleos de Sergipe. As
máquinas começaram a funcionar efetivamente no início deste ano, após as
mulheres aprenderem a usá-las na fabricação do lacê, matéria-prima da renda. As
trançadeiras além de baratear os custos das peças irão dar independência à
produção.
Os polos de renda irlandesa estão nas cidades de
Laranjeiras, a 20 km da capital, Maruim, 30km, e no povoado Estiva, em Nossa
Senhora do Socorro, a 13km de Aracaju. O Iphan caracteriza como polo os locais
onde há transmissão de saber entre as mestras. Não há indicação do número de
rendeiras em cada um desses locais.
O comitê gestor e a exposição em Luanda são as ações mais
recentes de salvaguarda e de divulgação da renda, mas passos anteriores já vinham
sendo dados. A Associação de Renda Irlandesa de Divina Pastora foi criada em
2000 para dar autonomia às rendeiras da pequena cidade referência da renda
irlandesa em Sergipe. Foi um grande passo em busca do protagonismo, lembra a
analista do Sebrae, Vânia Alzira Rodrigues Santos que acompanha as conquistas e
dificuldades das mestras rendeiras há pelo menos 20 anos.
Em 2013, por meio do Sebrae, a renda irlandesa de Divina
Pastora recebeu o Selo de Indicação Geográfica (IG), concedido pelo Instituto
Nacional de Propriedade Industrial (INPI). A certificação garante a procedência
e qualidade do produto e agrega valor e credibilidade ao artesanato.
Desafios a vencer
Bruna Marques, designer de moda, diz que é preciso aguçar a
perspectiva estética.
Foto: Fan F1
Exploração, falta de instrumentalização e autoestima são
grandes desafios que na opinião da professora e designer de moda se somam à
necessidade de capacitação. “É preciso aguçar a perspectiva estética dessas
artesãs e evitar que extraiam delas a essência, o saber-fazer”, disse.
Bruna Marques acrescentou que as rendeiras precisam dominar
o conhecimento de modelagem, “porque aí, sim, essas mulheres serão
protagonistas do trabalho delas, por terem domínio da técnica de uma arte
única”, destacou.
Por outro lado, Vânia Alzira garante que o Sebrae aplica
cursos há bastante tempo, não na área de moda, mas de empreendedorismo, de
qualificação de produtos, precificação entre outros e que o grande entrave é o
escoamento do produto. “Eu vejo que o grande gargalo é a comercialização e uma
boa divulgação”, assinalou.
Sem representatividade na capital
“Precisamos de representatividade na capital. Nós queremos
expor no lugar certo e vender nossa arte”, disse Maria José, ao apelar por um
ponto de venda específico para a renda irlandesa em Aracaju.
“A renda irlandesa é um artesanato caro com grande potencial
de desenvolvimento de renda e autonomia para aquelas mulheres e região, mas
elas precisam da divulgação e pontos de vendas específicos”, reforçou a
analista do Sebrae.
Na 7ª edição da Feira Agropecuária do Estado de Sergipe,
realizada entre 19 a 24 de março, no parque de exposições João Cleófas, zona
Oeste da capital, as rendeiras ganharam um estande para expor. Levaram 80
peças, entre colares, pulseiras, brincos com preços variando entre R$ 5 a 80.
Retornaram com as 80 peças para casa. “Não vendemos nada”, lamentou Maria José.
A Secretaria de Turismo do Estado garante que a renda
irlandesa tem espaço de venda na capital. Segundo a assessoria do secretário
Manelito Franco, caso a ASDRIDP-SE queira espaço exclusivo, basta formalizar o
pedido junto a Setur que será analisado.
Confira um pequeno trecho de um vídeo em que mostra Maria
José e Maria de Fátima confeccionado bordados.
Texto e imagens reproduzidos do site: fanf1.com.br
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