segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Africanidades e resistências na Dança de São Gonçalo da Mussuca


Publicado originalmente no site SESC SP, em 29 de maio de 2019

Africanidades e resistências na Dança de São Gonçalo da Mussuca

Por Marcelo Rangel Lima*

“...padres, mulheres, frades, cavalheiros e escravos a dançar e pular misturados e a gritar a plenos pulmões ‘Viva São Gonçalo do Amarante’.” Gentil de La Barbinais

Ora viva e arreviva, viva São Gonçalo viva

A Dança de São Gonçalo da Mussuca foi descrita pela primeira vez em 1976, no estudo etnográfico que compôs o Caderno 9 da Coleção Cadernos de Folclore, lançado juntamente com um disco compacto em vinil com cantigas do grupo, integrante da série Documentário Sonoro do Folclore Brasileiro, editada pela Campanha em Defesa do Folclore Brasileiro (CDFB). Segundo a responsável por tais registros, a pesquisadora Beatriz Góis Dantas, a realização da dança em interiores de igrejas foi descrita pela primeira vez com espanto em 1718, em Salvador, Bahia, por Gentil de La Barbinais, um viajante francês. Banida dos templos católicos na mesma época, provavelmente pela sensualidade da dança e participação de negros, persistiu apenas em áreas rurais.

O rito origina-se a partir do culto a um santo português homônimo, como manifestação tradicional do catolicismo popular brasileiro, num conjunto que envolve as Folias de Reis, Congadas, Cavalhadas e outras. Ocorre em diferentes estados brasileiros, nas regiões sul, sudeste e nordeste, e destina-se, geralmente, ao pagamento de promessas feitas ao Santo. No entanto, no Povoado Mussuca, localizado em território quilombola na cidade de Laranjeiras, Sergipe, o culto a São Gonçalo diferencia-se pela exuberância dos traços de matriz africana, presentes em cada uma de suas 7 Jornadas, nome dado às partes que compõem a série de evoluções coreográficas executadas ao som de cantos específicos. Tais particularidades transformaram a dança ritual em elemento de construção de uma identidade cultural local e regional.

No estado de Sergipe também já foram registradas ocorrências do rito, em municípios como Lagarto, Nossa Senhora de Lourdes, Pinhão, Poço Verde, Riachão do Dantas, Simão Dias, Tomar do Geru e São Cristóvão. Na Mussuca, calcula-se que ocorra desde as primeiras décadas do século XIX, de acordo com as pesquisas de Wellington Bomfim (2014) sobre o São Gonçalo da Mussuca. Em outros municípios, apresentava algumas semelhanças com o modo como é praticado na Mussuca, mas os trajes e adornos coloridos, as influências africanas, os passos cadenciados e o molejo dos corpos masculinos renderam-lhe notoriedade e ampliaram sua representatividade étnica e comunitária em processos políticos, sociais e culturais de promoção da garantia de direitos que a Constituição Federal de 1988 prevê para comunidades remanescentes de quilombos. Além disso, foi objeto de estudo de variadas pesquisas acadêmicas, em diferentes perspectivas e áreas do conhecimento.


Quem não tem cama nem rede, dorme no couro da vaca

Atualmente, o único grupo praticante da Dança de São Gonçalo que se tem notícia em Sergipe é o da Mussuca, situada na zona rural de Laranjeiras. Vale destacar que o município teve o conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico de sua sede tombado em 1996 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) por seu valor arquitetônico e histórico. Seguindo o rastro das tradições coloniais, a produção açucareira rendeu à cidade uma opulência econômica, erguida pela mão de obra escravizada que, como destaca Sharyse Amaral (2012), foi imprescindível para a produção dos engenhos de açúcar.

Embora tenha perdido importância econômica nas primeiras décadas do século XX, Laranjeiras sustenta seu legado histórico na arquitetura do casario colonial e nas heranças culturais dos negros, como ressalta Bomfim (idem). O autor salienta que os africanos escravizados, seus filhos e netos vivenciaram o terror do cativeiro e a restrição de acesso em espaços públicos e que as possibilidades de expressão de suas tradições - cantos, danças, indumentárias e ritmos – ficaram restritas às festas promovidas pela Igreja. Mas estas acabaram sendo incorporadas ao repertório cultural da cidade com o passar dos séculos. Um exemplo disso é a Festa do Lambe-sujo, uma representação popular que expõe anualmente as tensões e conflitos entre as etnias que formaram a cidade. Na perspectiva arqueológica territorial apresentada por Regina Santana (2008), o auto popular apresenta o papel dos negros na formação da cidade e a lógica perversa do regime escravagista, que gerou revoltas e a formação de quilombos, expondo a incorporação de referências africanas ao repertório cultural da cidade.


Adeus parente que eu vou m’imbora, pra terra de Congo, vou ver Angola

Nesta conjuntura social e cultural, o histórico da Mussuca de resistência à opressão e à servidão, bem como a vitalidade de suas expressões culturais, tem proporcionado visibilidade à comunidade, sobretudo a partir da primeira metade dos anos 1970, quando o Grupo São Gonçalo passa a participar da festa de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário. Na mais famosa festa religiosa da cidade, comemorada no dia de Reis, no início de janeiro, a ocorrência de expressões artístico-culturais populares de matriz africana, também chamadas de brincadeiras pelos laranjeirenses, remontam à passagem do século XIX para o XX, como indica Dantas (2015).

Tais práticas lúdicas foram sendo valorizadas pelo poder público ao longo do século XX até convergirem para a criação do Encontro Cultural de Laranjeiras (ECL), em 1976, que visa a divulgação e valorização da cultura popular reunindo manifestações culturais, pesquisadores e visitantes de Sergipe e do Brasil. Em 2020, o ECL chegará a sua 45a edição. O São Gonçalo da Mussuca tem participação destacada no evento, que foi consolidado, de acordo com Dantas (2013, 2015), a partir de políticas culturais de integração do turismo com aspectos culturais por meio da valorização do folclore, do artesanato e do patrimônio arquitetônico.

A notoriedade do Grupo São Gonçalo é apontada como fator preponderante da identidade étnica da Mussuca no Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) produzido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a partir de solicitação de uma associação local após a emissão da certificação de autorreconhecimento como comunidade remanescente de quilombos da Fundação Cultural Palmares (FCP), obtida em 2006. O estudo apresenta registros oficiais da existência da Mussuca desde 1836, a partir da escravização de africanos para trabalho nas fazendas e engenhos na região. A narrativa mais conhecida na comunidade sobre sua formação indica que a ocupação teria sido em função da doação de terras a uma escrava, Maria Benguela, pois esta teria feito o parto da filha do dono do engenho. Depois, outras famílias foram chegando e se estabelecendo nos arredores. Na atualidade, a indicação de seu atual líder para a composição do primeiro Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial em Sergipe também evidencia a representatividade do Grupo.

Ainda que não expresse mais a atual realidade populacional local, ainda é possível ouvir dos moradores mais antigos, a expressão “a Mussuca é uma família só”, que remete a um possível isolamento dos primeiros moradores e reflete uma estratégia, segundo Bomfim (idem), para atribuir singularidade à localidade. No entanto, no caso do Grupo São Gonçalo, os laços familiares são a tônica de sua formação.


Em de rê rê mamãe Zambi

O Grupo é liderado pelo Patrão, mestre que coordena o rito de louvor tocando uma caixa enquanto comanda a ordenação de cada uma das Jornadas. É ele que também conduz negociações sobre as necessidades do grupo para pagamentos de promessa feitas por devotos de São Gonçalo, bem como articulações com autoridades locais e produtores culturais para apresentações em eventos culturais e artísticos, hoje muito mais comuns que as promessas. Os trajes brancos de marinheiro que usa durante a dança remetem à origem do santo, que teria sido também um violeiro farrista que tocava com prostitutas para que não pecassem.

Há pelo menos 3 gerações de Patrões, a liderança tem sido repassada a pessoas com relações próximas de parentesco: o atual, Neilton Santana, é neto do mestre anterior, Seu Sales, que recebeu a incumbência de conduzir o grupo de um primo, Paulino, que era pai da atual cantora do grupo, D. Nadir, septuagenária que integra e lidera outros grupos culturais na mesma comunidade. Antes dela, os cantos eram entoados pelo Patrão e a única mulher que participava das atividades do grupo era sua esposa, chamada de Mariposa. Durante o ritual e as apresentações, é ela que carrega a imagem do santo dentro de uma pequena barca, em referência ao vínculo de São Gonçalo com o mar. O papel de Mariposa ainda cabe a D. Santaninha, viúva de Seu Sales, mas a esposa de Neilton sabe que assumirá futuramente esta tarefa.

O atual Patrão começou a dançar como Figura aos 8 anos e tornou-se líder do grupo juvenil aos 14 anos. Mais tarde, aos 21, foi indicado ao posto de Patrão do São Gonçalo a partir do momento em que seu avô, que liderava o grupo desde os anos 90, passou a ter sucessivos problemas de saúde. Neilton foi criado por ele como filho, mas seu pai verdadeiro é o integrante mais antigo ainda em atividade no grupo.

Embora com indumentária baseada em trajes e adornos femininos, uma referência às prostitutas que São Gonçalo teria salvo com suas cantorias nos portos de Portugal, a dança é executada unicamente por homens, os Figuras. As cores e estampas de suas vestes e o lenço branco amarrado na cabeça, bem como as pulseiras, brincos e colares multicoloridos, expõem referências a tradições religiosas africanas e influências árabes, como ressalta Dantas (2015). Tais referências também ganham forma na coreografia e na música, seja na base percussiva produzida pelo som da caixa e de reco-recos ou nas letras dos cânticos que compõem a dança ritual. Os cantos das Jornadas evocam Congo e Angola e é possível identificar vocábulos e expressões que remetem a línguas africanas em seus versos, ainda que tenham significado hoje desconhecido pelos dançadores da Mussuca.


Quem dança o São Gonçalo, tem de ter o pé ligeiro

Embora seja originariamente destinado ao pagamento de promessas, a popularidade do grupo tem se ampliado devido ao seu bailado envolvente, seus requebros sensuais e o encantamento produzido pela altivez dos Figuras. Em Sergipe, o grupo é recebido calorosamente em todo o estado e já é considerado por muitos como patrimônio cultural sergipano. O patrão anterior, Seu Sales, foi reconhecido, ainda enquanto vivo, como “importante referencial da Cultura Laranjeirense” através da Lei Municipal 909/209, que institui o Registro de Mestre dos Mestres da Cultura da Cidade. Sob sua liderança, o São Gonçalo da Mussuca criou mais 2 grupos de dançadores: o São Gonçalo Juvenil, no qual os integrantes tem idades entre 17 e 22 anos, e o Mirim, composto por crianças de 7 a 14 anos. Para participar deste último, integrantes são selecionadas em testes anuais abertos à comunidade.

Se as danças e cantos apresentados ao longo deste texto denotam o histórico de resistência cultural dos moradores da Mussuca, a trajetória recente do Grupo evidencia seu papel como agente de uma reconfiguração dinâmica de forças sociais, culturais e políticas. Valendo-se de uma tradição que incorpora referências ancestrais, tem atuado na promoção da inclusão e da visibilidade social de uma comunidade remanescente de quilombos, contribuindo para o fortalecimento de sua coesão social e a valorização do patrimônio cultural sergipano de matriz africana.
  
Fotos: Matheus José Maria
  
*Marcelo Rangel Lima é jornalista e gestor cultural, mestrando do Programa de Pós Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Sergipe (PPGCOM/UFS), na linha de pesquisa Cultura, Economia e Políticas de Comunicação.

Texto e imagens reproduzidos do site: sescsp.org.br

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