Fotos: Sylvia Leite
Publicado originalmente no site Lugares de Memória, em 24/05/2018
Museu do Sertão: a conciliação entre criar e preservar
Quando era menino, em Nossa Senhora da Glória, no sertão de
Sergipe, Cícero Alves dos Santos não gostava de brincar com as outras crianças.
Preferia ouvir as histórias de Caipora, Lobisomen,
Fogo corredor, Mulher de Padre e de Cordel contadas pelos
velhos sertanejos. Quem assistia aquilo, achava uma escolha muito estranha e
dizia que ele estava assumindo um comportamento de "Véio".
O apelido permaneceu por toda a infância, entrou pela
adolescência, vida adulta e acabou se tornando seu nome artístico. Se ainda
estivessem vivas, as pessoas que lhe batizaram assim saberiam agora que ele
sempre brincou, mas tinha uma brincadeira própria: viajar pelo mundo encantado
das histórias que escutava.
O imaginário mítico foi pouco a pouco se materializando em
esculturas de madeira que hoje habitam inúmeros compartimentos de um sítio em
Feira Nova, município vizinho à sua terra natal. As árvores transformadas,
dispostas lado a lado, parecem pequenas florestas de vultos, iluminadas por
réstias de sol que entram pelas gretas dos telhados.
Em quartos vizinhos, e algumas vezes até ocupando o mesmo
espaço, encontram-se velhas ferramentas das mais diversas profissões. Essas
duas faces do artista, traduzidas por ele mesmo como "o desejo de criar e
de preservar", são as vertentes do Museu do Sertão.
A vida extraída de árvores mortas
A face criativa poderia ser classificada em três variedades:
os bichos, as figuras humanas e as miniaturas. A escolha do tipo e do tema
depende da hora, da vontade e do material disponível. "Eu olho o galho e
já sei o que fazer" revela VÉIO. Ele diz que pensa, executa, dá nome e
cria a história de cada peça, mas adverte: "não é história escrita, a
história é pra mim. Se chegar alguém aqui que eu achar que mereça eu falar de
alguma peça, eu vou falar ..."
A escultura ao lado, por exemplo, traz à tona a paixão do
artista pelas tradições. É inspirada em grupos religiosos conhecidos como
"Penitentes", que saem às ruas encapuzados e vestidos de branco,
geralmente na Semana Santa, rezando pela purificação das almas. Já o cachimbo
expõe seu lado espirituoso. Traz uma caveira para mostrar o destino de quem
pita.
Véio esculpe ora em galhos ou troncos secos, ora em raízes e
faz questão de deixar claro que não é desmatador. Pelo contrário. O que faz,
segundo acredita, é "dar vida ao que já está morto". O jeito encontrado para usar madeira sem
destruir foi procurar, no mato, árvores caídas naturalmente ou, na área
urbanizada, aquelas que por questões de segurança precisaram ser arrancadas.
No Museu do Sertão tem peça de todo tamanho. As maiores
ultrapassam a altura do artista, enquanto as menores cabem em sua mão e algumas
chegam a ser esculpidas em palitos de fósforo. Além de ser fascinado pelo
detalhe, Véio vê nas miniaturas uma forma de comunicar ao mundo que o tamanho
não importa: "a peça pode ser
pequena e ter mais valor que uma grande".
Esse talento para esculpir obras minúsculas surgiu na
infância, por volta dos cinco anos de idade.
O material era a cera de abelha. Ele trabalhava escondido e
quando surgia alguém apressava-se em desmanchar tudo para não ser pego em
flagrante. Era assim porque sua família e toda a vizinhança confundiam esculpir
com brincar de boneca, uma atividade proibida para os homens.
Na época, o maior desejo de Cícero era poder manter as
esculturas inteiras, à sua volta, para admirá- las – um
sonho que só foi realizado décadas depois com a compra da terra que hoje abriga
o Museu do Sertão.
Histórias de vida contadas pelas ferramentas de trabalho
Esculpir e admirar as próprias obras não é suficiente para o
artista. Se na infância ele gostava de estar com os velhos, na medida em que
foi amadurecendo parece ter substituído essa companhia pela de máquinas e
instrumentos antigos.
São ferramentas de marceneiros, carpinteiros, ferreiros,
pedreiros, costureiras, fiandeiras, moleiros, que ele arrecada com parentes,
amigos e conhecidos. Muita gente já sabe de sua paixão pelos instrumentos e tem
prazer em colaborar. Conta-se que Véio já foi até incluído em testamento como
herdeiro de uma roca. É que a dona da peça queria ter certeza de que seu
instrumento de trabalho seria preservado no museu.
Além de coletar, ele também faz questão de saber como as
ferramentas funcionam. Busca as informações para sua satisfação pessoal e para
poder explicar aos visitantes. Sabe como utilizar todas as peças e conhece as
etapas do dos aparatos mais complexos como, por exemplo, a casa de farinha.
Criando e preservando com maquete e pesquisa histórica
O desejo de criar e preservar foi fundido por Véio em um
terceiro projeto: o resgate da memória da cidade natal, Nossa Senhora da
Glória, na época de sua fundação, quando ainda se chamava Boca da Mata. Por
meio de uma maquete que ele próprio esculpiu, o artista resgatou não apenas a
aparência das casas e o traçado da cidade, mas também os aspectos culturais e
religiosos do lugar. Tudo de maneira informal e sem escrever uma só linha.
Para complementar a maquete e tornar a memória ainda mais
viva, Véio pretende fazer o que ele chama de "uma construção que vai
mostrar como foram as primeiras moradias da região". O passo inicial já
foi dado com a aquisição de lajotas de cerâmica extraídas de uma casa
construída em 1901, que o artista exibe como um troféu.
Ganhando o mundo
A vertente de preservação do Museu é conhecida de poucos,
mas a de criação já ganhou asas. Em 2017, o sertanejo conhecido em sua terra
natal como "o cara que faz bonecos" foi um dos dez contemplados com o
Prêmio Itaú Cultural 30 anos, promovido, segundo os organizadores, para destacar
artistas cuja contribuição impactou o cenário cultural brasileiro nas últimas
três décadas. Em 2018, a exposição intitulada "Véio - a imaginação da
madeira", ocupou três andares do prédio do Instituto na Avenida Paulista.
Mas antes disso, o trabalho do artista sergipano já tinha
ido muito mais longe. Em 2012, algumas de suas obras integraram a coletiva
Histoires de Voir, da Fondation Cartier, em Paris e quatro de suas obras hoje
fazem parte do acervo da instituição. Três anos depois, o artista inaugurou uma
exposição individual em Veneza, paralelamente à Bienal, com 109 obras,
patrocinada por uma grife italiana.
Autêntico e irreverente, Véio vem construindo ao longo dos
anos um verdadeiro Museu Vivo. Há vida em seu ateliê, que ocupa um dos
quartinhos do sítio; há vida nas obras, que vão se acumulando dia a dia; há
vida nas ferramentas que manuseia e descreve; há vida em todas esses movimentos
que fazem o museu caminhar junto com seu autor, seguindo a ligeireza do tempo.
Há vida, também, nas visitas, que precisam ser agendadas previamente e contam
com a monitoria do próprio Véio.
Texto e imagens reproduzidos do site: lugaresdememoria.com.br