terça-feira, 17 de abril de 2018

Estudo analisa as práticas amorosas em Sergipe (fim do séc XIX)

 Joelma Dias Matias: "Antes do período de Emília, até metade do período que Emília viveu, 
as relações eram muito controladas pela família e pela sociedade" 
Foto: Adilson Andrade - Ascom/UFS

 'Luz na tormenta', livro publicado por Emília Fontes, contendo uma coletânea de 140 cartas trocadas entre ela e Joaquim Fontes (acervo da autora)

Emília Rosa de Marsillac Mota e Joaquim Martins Fontes
Fotos: Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe

Publicado originalmente no site Ciencia UFS, em  27 de março de 2018
  
Romance e história: o amor e normas socioculturais nas cartas de Emília e Joaquim Fontes
Estudo analisa as práticas amorosas em Sergipe no fim do século XIX, a partir da experiência do casal

Definir um relacionamento como uma história de amor depende de muitos fatores e nem é preciso dar certo no fim pra que seja descrita como tal. A sociedade e suas regras para os sentimentos dos românticos interferem muito mais do que imaginamos nas nossas relações afetivas.

A pesquisadora Joelma Dias Matias traz em sua dissertação de mestrado uma análise das práticas amorosas na capital sergipana a partir das cartas trocadas por Emília e Joaquim Fontes. Intitulado “Práticas amorosas e normas socioculturais nas narrativas epistolares de Emília e Joaquim Fontes”, o trabalho faz uma análise completa dos conceitos de amor vividos em diferentes épocas, até chegar no tempo em que os apaixonados sergipanos viveram.

As correspondências amorosas que nos permitiram conhecer a história de Emília e Joaquim foram reveladas através do livro lançado pela própria Emília, Luz na tormenta. A obra é composta por uma coletânea de 140 cartas, 110 delas trocadas entre a autora e Joaquim durante o conturbado noivado entre os dois, entre 1890 e 1894.

Joelma identificou três diferentes conceitos de amor ao longo do tempo: Eros, Philia e Cárita. Do pensamento de Platão, surgiu o Eros, representando o amor romântico, sofrimento e o desejo pela pessoa amada através da ideia de paixão. Os gregos não confiavam no Eros, pois, segundo eles, isso alterava a racionalidade humana.

Depois, Aristóteles nos trouxe o conceito de Philia, que tratava do amor como algo relacionado à amizade, a vontade de estar na companhia do outro e na manifestação das virtudes humanas. Em seguida, o pensamento cristão disseminou o conceito de Cárita, ou Ágape, um conceito de amor que estava mais ligado ao pensamento bíblico de amor ao próximo.

Além dos pensadores, o contexto econômico e político também alteravam a percepção humana sobre as práticas amorosas. De acordo com Joelma, na Idade Medieval o amor era tratado como um amor cortês, onde a servidão do homem era a maior demonstração do sentimento, a mulher tinha que ser conquistada a todo custo.

Já na Idade Média, esse conceito foi mais ao extremo, quando o amor era vivido como sofrimento, e se casar com a mulher amada não era mais um prêmio. Quanto maiores fossem os obstáculos entre os amantes, maior era o amor.

O conceito que chegou ao Brasil, de acordo com a pesquisadora, foi o do amor burguês, entre o final do século XVIII e início do século XIX. Era o amor distante, irrealizável e que era proibido de ser demonstrado publicamente.

As cartas como fontes históricas

De acordo com o historiador e professor de História do Brasil e História de Sergipe e também do Mestrado em História da UFS, Samuel Albuquerque, o livro publicado por Emília se caracteriza como uma fonte histórica rica em detalhes sobre aquela época.

“O conceito de fonte histórica é bastante amplo. Tudo que é capaz de preservar informações sobre grupos e indivíduos de uma dada sociedade é, potencialmente, uma fonte histórica”, explica Samuel, que complementa dizendo que “mais que nunca, a ‘escrita de si’, que são os testemunhos autobiográficos (cartas, postais, memórias, diários, autobiografias), interessam aos estudiosos do nosso passado. É ascendente o número de trabalhos e estudiosos renomados que se debruçam sobre esse tipo de fonte histórica”.

“Algumas cartas se perderam, como ela mesma fala, e a gente entende como historiadora e pesquisadora que ela pode ter publicado apenas o que ela quis publicar”, relata Joelma.

Emília e Joaquim

Emília Rosa de Marsillac Mota foi uma mulher que respeitou as regras que a sociedade impôs nas relações amorosas das moças daquela época, mas foi capaz de, sutilmente, desafiá-las para viver o seu amor com Joaquim Martins Fontes. A história de amor vivida em Aracaju entre os anos de 1890 e 1895 se transformou em livro, no qual a protagonista revela, através de cartas trocadas com o noivo, os conturbados momentos até que o casal finalmente fosse reconhecido como Emília e Joaquim Fontes. A primeira batalha para que o casamento acontecesse foi a de aceitação da própria Emília de ser amada pelo pretendente.

“Ela se achava numa condição tão pequena, pensava que não poderia ser objeto de cobiça pelos homens. Ela se achava feia, tinha alguns predicados que falava de si mesma, de não saber escrever bem; não se achava mulher para quem os homens pudessem olhar. Não acreditava muito no amor que Joaquim sentia, até todas as provas que ele deu. Quando ele a convenceu de que realmente a amava e a queria como esposa, foi que ela realmente acabou aceitando e, indiretamente, lutando pra que conseguisse se casar com ele”, revela a pesquisadora.

Joelma aponta que Emília foi muito reconhecida na região sudeste, onde morou após seu casamento com Joaquim, devido ao trabalho que o marido exercia como promotor público. Mas lamenta o fato de a história do casal não ser conhecida no próprio estado onde nasceram. Há exemplares do livro de Emília no Instituto Histórico de Sergipe, mas praticamente não houve circulação da obra no estado.

“Ela é uma mulher de dois tempos. Ela nasceu e viveu numa parte do século XIX e já pegou uma transição do século XX onde as coisas, principalmente onde ela foi morar, já estavam totalmente à frente do que ela via aqui no nosso estado”, assinala Joelma.

Controle religioso

Era comum que a igreja influenciasse as famílias a escolherem os pretendentes de seus herdeiros. O principal motivo seria a contribuição que essas famílias abastadas realizavam para as paróquias na época. Dividir a riqueza de uma família rica com outra família menos favorecidas economicamente poderia trazer como consequência a diminuição da doação espontânea para a igreja.

Mas, até nesse aspecto, Emília conseguiu vencer. Quem realizou seu casamento foi o próprio Monsenhor Olímpio Campos, amigo influente da família e de toda a sociedade religiosa que viveu naquela época. Dessa forma, até a aceitação da igreja foi possível graças à sua insistência em viver o amor que Joaquim lhe oferecia.

“A igreja controlava a questão da castidade, de casar virgem, que a mulher era criada para casar e procriar. Que a mulher fosse criada para ser boa dona de casa, boa mãe de família, boa esposa e que o marido ele tinha toda a liberdade do mundo para fazer o que ele quisesse, em relação ao prazer e ao sexo, com outras mulheres e não com sua esposa” conta a pesquisadora, e acrescenta que “quando a igreja controla uma sociedade, cria-se um padrão de comportamento”.

A mulher na sociedade oitocentista

Se as regras para viver o amor mudavam através dos séculos, as mulheres eram as que mais sentiam essa mudança. O controle patriarcal nas relações amorosas pesava mais para as moças da época, de quem os comportamentos inadequados eram considerados abomináveis.

“Antes do período de Emília, até metade do período que Emília viveu, as relações eram muito controladas pela família e pela sociedade. Até a mulher se impor e verdadeiramente escolher o seu par, seu futuro esposo, tinha todo esse controle que ela vivenciou”, aponta Joelma.

As moças precisavam de paciência e estratégia para conseguir viver um romance. As mulheres em condição de escravidão que acompanhavam as senhoras faziam o papel de intermediadoras amorosas, levando e trazendo recados dos amantes, acompanhando-as em passeios curtos pelas ruas - embora, por outro lado, não fosse bem visto uma mulher sair sem a companhia de um homem. Em casos extremos, as mulheres escravizadas chegavam a ajudar sua senhora em supostos “sequestros”, que nada mais eram do que fugas planejadas, em que a moça só voltaria para casa depois que sua família aceitasse o casamento com o pretendente “raptor”.

A pesquisadora reconhece que Emília foi uma mulher que quebrou essas regras sociais em relação ao casamento, mesmo que tenha feito isso de forma velada. O fato é que ela teve que mobilizar grande parte de sua família e amigos influentes para que seu pai aceitasse o noivado com Joaquim.

“Os irmãos também fizeram uma intervenção junto ao pai, a madrasta tentou aprontar algumas para que o pai aceitasse – e depois se arrependia. Ela [Emília] usou algumas estratégias para poder fazer com que o pai se convencesse de que eles se amavam e que ela queria casar com Joaquim. Apesar de que o pai apresentava outros pretendentes a ela”, destaca Joelma.

Ainda somos oitocentistas?

Joelma também dá aulas para mulheres em cidades do interior do estado e explica que algumas práticas ainda não foram superadas em relação ao controle das mulheres. Episódios em que alunas são impedidas de assistir as aulas pelos seus maridos ainda são recorrentes, por exemplo. Opiniões fundadas, pela forma como as mulheres agem perante a sociedade, demonstram também a imposição moral religiosa influenciando as famílias do século XXI.

“Alguns resquícios do século XIX e do patriarcalismo ainda persistem na nossa sociedade, sobretudo os que são impostos a nós, mulheres. A mulher ainda é muito cobrada no que diz respeito à sua função como mulher e esposa”, conclui Joelma.

Marília Souza (bolsista)
Marcilio Costa
comunica@ufs.br

Texto e imagens reproduzidos do site: ciencia.ufs.br

Um comentário:

  1. Se ainda somos muito oitocentistas, temos que aprender ainda mais com o passado.

    Que o livro de Emília Fontes tenha umas trajetória gloriosa.

    Abraços, Aldrin.

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