Joelma Dias Matias: "Antes do período de Emília, até
metade do período que Emília viveu,
as relações eram muito controladas pela
família e pela sociedade"
Foto: Adilson Andrade - Ascom/UFS
'Luz na tormenta', livro publicado por Emília Fontes, contendo uma coletânea de 140 cartas trocadas entre ela e Joaquim Fontes (acervo da autora)
Emília Rosa de Marsillac Mota e Joaquim Martins Fontes
Fotos: Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe
Publicado originalmente no site Ciencia UFS, em 27 de março de 2018
Romance e história: o amor e normas socioculturais nas
cartas de Emília e Joaquim Fontes
Estudo analisa as práticas amorosas em Sergipe no fim do
século XIX, a partir da experiência do casal
Definir um relacionamento como uma história de amor depende
de muitos fatores e nem é preciso dar certo no fim pra que seja descrita como
tal. A sociedade e suas regras para os sentimentos dos românticos interferem
muito mais do que imaginamos nas nossas relações afetivas.
A pesquisadora Joelma Dias Matias traz em sua dissertação de
mestrado uma análise das práticas amorosas na capital sergipana a partir das
cartas trocadas por Emília e Joaquim Fontes. Intitulado “Práticas amorosas e
normas socioculturais nas narrativas epistolares de Emília e Joaquim Fontes”, o
trabalho faz uma análise completa dos conceitos de amor vividos em diferentes
épocas, até chegar no tempo em que os apaixonados sergipanos viveram.
As correspondências amorosas que nos permitiram conhecer a
história de Emília e Joaquim foram reveladas através do livro lançado pela
própria Emília, Luz na tormenta. A obra é composta por uma coletânea de 140
cartas, 110 delas trocadas entre a autora e Joaquim durante o conturbado
noivado entre os dois, entre 1890 e 1894.
Joelma identificou três diferentes conceitos de amor ao
longo do tempo: Eros, Philia e Cárita. Do pensamento de Platão, surgiu o Eros,
representando o amor romântico, sofrimento e o desejo pela pessoa amada através
da ideia de paixão. Os gregos não confiavam no Eros, pois, segundo eles, isso
alterava a racionalidade humana.
Depois, Aristóteles nos trouxe o conceito de Philia, que
tratava do amor como algo relacionado à amizade, a vontade de estar na
companhia do outro e na manifestação das virtudes humanas. Em seguida, o
pensamento cristão disseminou o conceito de Cárita, ou Ágape, um conceito de
amor que estava mais ligado ao pensamento bíblico de amor ao próximo.
Além dos pensadores, o contexto econômico e político também
alteravam a percepção humana sobre as práticas amorosas. De acordo com Joelma,
na Idade Medieval o amor era tratado como um amor cortês, onde a servidão do
homem era a maior demonstração do sentimento, a mulher tinha que ser
conquistada a todo custo.
Já na Idade Média, esse conceito foi mais ao extremo, quando
o amor era vivido como sofrimento, e se casar com a mulher amada não era mais
um prêmio. Quanto maiores fossem os obstáculos entre os amantes, maior era o
amor.
O conceito que chegou ao Brasil, de acordo com a
pesquisadora, foi o do amor burguês, entre o final do século XVIII e início do
século XIX. Era o amor distante, irrealizável e que era proibido de ser
demonstrado publicamente.
As cartas como fontes históricas
De acordo com o historiador e professor de História do
Brasil e História de Sergipe e também do Mestrado em História da UFS, Samuel
Albuquerque, o livro publicado por Emília se caracteriza como uma fonte
histórica rica em detalhes sobre aquela época.
“O conceito de fonte histórica é bastante amplo. Tudo que é
capaz de preservar informações sobre grupos e indivíduos de uma dada sociedade
é, potencialmente, uma fonte histórica”, explica Samuel, que complementa
dizendo que “mais que nunca, a ‘escrita de si’, que são os testemunhos
autobiográficos (cartas, postais, memórias, diários, autobiografias),
interessam aos estudiosos do nosso passado. É ascendente o número de trabalhos
e estudiosos renomados que se debruçam sobre esse tipo de fonte histórica”.
“Algumas cartas se perderam, como ela mesma fala, e a gente
entende como historiadora e pesquisadora que ela pode ter publicado apenas o
que ela quis publicar”, relata Joelma.
Emília e Joaquim
Emília Rosa de Marsillac Mota foi uma mulher que respeitou
as regras que a sociedade impôs nas relações amorosas das moças daquela época,
mas foi capaz de, sutilmente, desafiá-las para viver o seu amor com Joaquim
Martins Fontes. A história de amor vivida em Aracaju entre os anos de 1890 e
1895 se transformou em livro, no qual a protagonista revela, através de cartas
trocadas com o noivo, os conturbados momentos até que o casal finalmente fosse
reconhecido como Emília e Joaquim Fontes. A primeira batalha para que o
casamento acontecesse foi a de aceitação da própria Emília de ser amada pelo
pretendente.
“Ela se achava numa condição tão pequena, pensava que não
poderia ser objeto de cobiça pelos homens. Ela se achava feia, tinha alguns
predicados que falava de si mesma, de não saber escrever bem; não se achava
mulher para quem os homens pudessem olhar. Não acreditava muito no amor que
Joaquim sentia, até todas as provas que ele deu. Quando ele a convenceu de que
realmente a amava e a queria como esposa, foi que ela realmente acabou
aceitando e, indiretamente, lutando pra que conseguisse se casar com ele”,
revela a pesquisadora.
Joelma aponta que Emília foi muito reconhecida na região
sudeste, onde morou após seu casamento com Joaquim, devido ao trabalho que o
marido exercia como promotor público. Mas lamenta o fato de a história do casal
não ser conhecida no próprio estado onde nasceram. Há exemplares do livro de
Emília no Instituto Histórico de Sergipe, mas praticamente não houve circulação
da obra no estado.
“Ela é uma mulher de dois tempos. Ela nasceu e viveu numa
parte do século XIX e já pegou uma transição do século XX onde as coisas,
principalmente onde ela foi morar, já estavam totalmente à frente do que ela
via aqui no nosso estado”, assinala Joelma.
Controle religioso
Era comum que a igreja influenciasse as famílias a
escolherem os pretendentes de seus herdeiros. O principal motivo seria a
contribuição que essas famílias abastadas realizavam para as paróquias na
época. Dividir a riqueza de uma família rica com outra família menos
favorecidas economicamente poderia trazer como consequência a diminuição da
doação espontânea para a igreja.
Mas, até nesse aspecto, Emília conseguiu vencer. Quem
realizou seu casamento foi o próprio Monsenhor Olímpio Campos, amigo influente
da família e de toda a sociedade religiosa que viveu naquela época. Dessa
forma, até a aceitação da igreja foi possível graças à sua insistência em viver
o amor que Joaquim lhe oferecia.
“A igreja controlava a questão da castidade, de casar
virgem, que a mulher era criada para casar e procriar. Que a mulher fosse
criada para ser boa dona de casa, boa mãe de família, boa esposa e que o marido
ele tinha toda a liberdade do mundo para fazer o que ele quisesse, em relação
ao prazer e ao sexo, com outras mulheres e não com sua esposa” conta a
pesquisadora, e acrescenta que “quando a igreja controla uma sociedade, cria-se
um padrão de comportamento”.
A mulher na sociedade oitocentista
Se as regras para viver o amor mudavam através dos séculos,
as mulheres eram as que mais sentiam essa mudança. O controle patriarcal nas
relações amorosas pesava mais para as moças da época, de quem os comportamentos
inadequados eram considerados abomináveis.
“Antes do período de Emília, até metade do período que
Emília viveu, as relações eram muito controladas pela família e pela sociedade.
Até a mulher se impor e verdadeiramente escolher o seu par, seu futuro esposo,
tinha todo esse controle que ela vivenciou”, aponta Joelma.
As moças precisavam de paciência e estratégia para conseguir
viver um romance. As mulheres em condição de escravidão que acompanhavam as
senhoras faziam o papel de intermediadoras amorosas, levando e trazendo recados
dos amantes, acompanhando-as em passeios curtos pelas ruas - embora, por outro
lado, não fosse bem visto uma mulher sair sem a companhia de um homem. Em casos
extremos, as mulheres escravizadas chegavam a ajudar sua senhora em supostos
“sequestros”, que nada mais eram do que fugas planejadas, em que a moça só
voltaria para casa depois que sua família aceitasse o casamento com o
pretendente “raptor”.
A pesquisadora reconhece que Emília foi uma mulher que
quebrou essas regras sociais em relação ao casamento, mesmo que tenha feito
isso de forma velada. O fato é que ela teve que mobilizar grande parte de sua
família e amigos influentes para que seu pai aceitasse o noivado com Joaquim.
“Os irmãos também fizeram uma intervenção junto ao pai, a
madrasta tentou aprontar algumas para que o pai aceitasse – e depois se
arrependia. Ela [Emília] usou algumas estratégias para poder fazer com que o
pai se convencesse de que eles se amavam e que ela queria casar com Joaquim.
Apesar de que o pai apresentava outros pretendentes a ela”, destaca Joelma.
Ainda somos oitocentistas?
Joelma também dá aulas para mulheres em cidades do interior
do estado e explica que algumas práticas ainda não foram superadas em relação
ao controle das mulheres. Episódios em que alunas são impedidas de assistir as
aulas pelos seus maridos ainda são recorrentes, por exemplo. Opiniões fundadas,
pela forma como as mulheres agem perante a sociedade, demonstram também a
imposição moral religiosa influenciando as famílias do século XXI.
“Alguns resquícios do século XIX e do patriarcalismo ainda
persistem na nossa sociedade, sobretudo os que são impostos a nós, mulheres. A
mulher ainda é muito cobrada no que diz respeito à sua função como mulher e
esposa”, conclui Joelma.
Marília Souza (bolsista)
Marcilio Costa
comunica@ufs.br
Texto e imagens reproduzidos do site: ciencia.ufs.br
Se ainda somos muito oitocentistas, temos que aprender ainda mais com o passado.
ResponderExcluirQue o livro de Emília Fontes tenha umas trajetória gloriosa.
Abraços, Aldrin.