Suburbano, após o acidente, cercado por curiosos
Fonte: site Estações Ferroviárias
Publicado originalmente no site Expressao Sergipana, em 26 de Abril de 2018
Tragédia Ferroviária em Sergipe: Dezenas de Mortos e um
julgamento controverso
Acidente ocorrido em 1946 é considerado um dos maiores
desastres ferroviários do Brasil
De Redação
Nas primeiras décadas do século XX, o trem era o principal
meio de transporte de massa em Sergipe. Em um trecho da ferrovia entre as
cidades de Laranjeiras e Riachuelo, dezenas de pessoas morreram em um desastre
que comoveu o país – jornais chegaram a falar em centenas de vítimas fatais. O
desfecho da investigação sobre o acidente, porém, deixou dúvidas sobre as
causas e a condenação, que transformou em drama a vida de João Claro dos
Santos.
O pesquisador Luiz Paulo Bezerra estudou o processo-crime do
caso, combinado a fontes bibliográficas, para entender o que aconteceu no
acidente que é considerado a maior tragédia ferroviária do Brasil. A pesquisa
resultou na dissertação que Luiz apresentou ao Mestrado em História da
Universidade Federal de Sergipe (UFS), orientado pelo professor Petrônio José
Domingues.
No ano do ocorrido, 1946, o transporte de passageiros nas
rodovias ainda era tímido. Era principalmente pelas ferrovias que se locomoviam
pessoas e se transportavam mercadorias. Apelidado de Suburbano, o trem da
empresa Viação Férrea Federal Leste Brasileiro percorria a principal linha de
Sergipe: saía da capital, Aracaju, em direção ao norte do estado, passando por
Laranjeiras e Riachuelo, concluindo o percurso em Capela.
Com capacidade para 240 passageiros sentados, o Suburbano
saía sempre lotado da estação ferroviária da capital, no bairro Siqueira
Campos. Segundo a empresa férrea, 246 pessoas compraram bilhetes no dia da
tragédia, distribuídas na primeira e segunda classes.
No entanto, informações recuperadas por Luiz Paulo no
processo judicial indicam que havia bem mais do que 246 passageiros naquela
viagem. Nos depoimentos, todos os viajantes ouvidos pela polícia confirmaram a
superlotação.
Um funcionário do Suburbano, João Félix, relatou que a
quantidade de passageiros era “fora do comum”. “Razão pela qual os passageiros
iam se apinhando por toda parte”*, diz o depoimento de João, que era o
guarda-freio do trem, profissional responsável pela supervisão e acionamento
dos freios de veículos ferroviários.
O viajante Benício Vieira narrou aos investigadores que foi
obrigado a procurar um lugar entre o amontoado de pessoas e mercadorias. Manoel
dos Santos, outro passageiro, viajava em pé em um dos vagões “num aperto
medonho”, segundo seu depoimento no processo. A “enchente de pessôas era
incalculável”, completa sua fala à polícia.
Jornais da época, encontrados por Luiz Paulo em sua
pesquisa, apontavam que a superlotação nas ferrovias sergipanas era
corriqueira. É o que mostra uma manchete do Diário de Sergipe, de 19 de agosto
de 1946: “Socorro e Laranjeiras não se passaram nada de anormal a registrar-se.
As classes superlotadas, os passageiros reclamando, tudo na forma do costume”.
Depois de passar por Laranjeiras, em caminho a Riachuelo, o
Suburbano tem dificuldade para subir uma ladeira, segundo relatos de
passageiros. O maquinista, então, para o trem, tenta nova arrancada e
ultrapassa a subida, iniciando uma descida em alta velocidade, também
confirmada pelos depoimentos – o soldado João Batista dos Santos, que viajava
no Suburbano, “ouviu dizer” que “o maquinista dissera que iria tirar o atrazo,
e assim parecia porque após a subida, o trem parecia um motociclo a toda
velocidade”.
Momentos depois, ouve-se o barulho de uma das composições do
Suburbano saindo dos trilhos, causando um engavetamento dos três vagões da
composição. Em poucos segundos, a viagem se transforma em uma tragédia: dezenas
de mortos e feridos, desespero, incredulidade.
A TRAGÉDIA
Já havia anoitecido naquele 28 de março de 1946, quando
ocorreu o acidente. O local da tragédia, o povoado Pedrinhas, se transformou em
um cenário de dor e desolação. Pessoas mortas, mutiladas, feridas,
sobreviventes desesperados.
Luiz Paulo Bezerra reconstruiu a história do maior desastre
ferroviário de Sergipe
Foto: Adilson Andrade - Ascom/UFS
É o caso do ajudante de caminhão Manoel Ferreira dos Santos,
19 anos de idade, que viajou em pé, na segunda classe. Ele ficou preso aos
destroços até a chegada do salvamento – que não demorou, segundo testemunhas,
apesar do difícil acesso e da escuridão.
Outro sobrevivente narrou seu tormento ao Sergipe-Jornal,
sob anonimato. “Ouvi gritos de toda a parte, lamentos femininos e masculinos,
choro de crianças, soluços profundos, e senti a primeira classe virando comigo,
se fazendo em pedaços”, relatou.
Os muitos feridos foram levados a hospitais da região, de
acordo com a gravidade das lesões. No entanto, Luiz Paulo não conseguiu
recuperar os dados a respeito dos sobreviventes e possíveis óbitos resultantes
do desastre. O fato contribui para dificultar a precisão no número de mortos.
“Fomos atrás dos próprios laudos médicos emitidos pelo
hospital, mas, infelizmente, não conseguimos encontrar, o que nos preocupa. Tal
material nos forneceria informações fundamentais sobre as gravidades dos
ferimentos”, relata o pesquisador em seu trabalho. Ele visitou os hospitais
Cirurgia e Santa Isabel, além do pequeno centro hospitalar de Riachuelo.
A quantidade de mortos e feridos era tão grande, que médicos
e enfermeiros foram sobrecarregados, segundo o relato da polícia. Foram
contabilizados naquele momento 30 mortos identificados e outros 13 não
identificados. Quanto aos feridos, 53 foram avaliados pelos médicos, sendo 16
em estado muito grave.
A imprensa do Rio de Janeiro – então capital do Brasil –
noticiava cerca de 200 mortos. Já os jornais de Sergipe, em sua maioria,
atinham-se aos dados oficiais – o Sergipe-Jornal, porém, chegou a noticiar 120
mortos, com a possibilidade ainda de haver outros 60 sob os escombros.
Luiz Paulo não conseguiu recuperar informações que
esclarecessem o caso. Mas acredita que os números sejam mesmo superiores aos
oficiais, ainda que não alcancem os exorbitantes 200 mortos e 300 feridos
noticiados pela imprensa fluminense.
“[De acordo com as fontes pesquisadas,] dá para entender que
muitas pessoas que morreram no local foram levadas para outros locais para
serem enterradas e não foram contabilizadas. Tudo indica que foram acima dos
dados oficiais”, admite.
O desespero após o acidente foi também o início do drama de
João Claro dos Santos, o maquinista da locomotiva. Naquele cenário de tumulto,
sobreviventes tentaram linchar o condutor do trem, que fugiu para Laranjeiras,
onde, por medo, se apresentou à polícia da cidade.
Enquanto isso, a perícia iniciava seu trabalho no povoado
Pedrinhas. Três engenheiros realizaram a perícia técnica, enquanto a polícia
investigava o ocorrido, colhendo depoimentos dos sobreviventes.
AS INVESTIGAÇÕES
As perícias e a apuração do caso caminharam junto à atuação
da imprensa. Com uma postura sensacionalista, os jornais impressos cobravam
pressa para que se chegasse a um responsável. Ao mesmo tempo em que exigiam das
autoridades uma solução, os jornais – de Sergipe e do Rio de Janeiro – já
tratavam João Claro como culpado pela tragédia.
Acima: o engavetamento dos vagões do Suburbano provocou o
grande número de mortos
À esquerda: vítimas fatais
ficaram irreconhecíveis (Fotos anexadas ao processo).
À direita: mapa do local
onde ocorreu o acidente
Fonte: www.estacoesferroviarias.com
A perícia realizada pelos engenheiros indicou que a linha
férrea naquele trecho estava em perfeito estado de conservação. E concluiu que
“a aplicação brusca de freios num momento em que a composição desenvolvia
velocidade superior a admissível no trecho em que se deu o acidente”, segundo
consta nos autos.
Por outro lado, a perícia identificou que a única pastilha
de freios encontrada nos destroços do Suburbano estava desgastada. As demais
pastilhas poderiam ter sido reutilizadas em outras máquinas, prática
aparentemente costumeira.
Em seu depoimento, João Claro denunciou a superlotação do
Suburbano, ocorrida, segundo ele, por uma invasão aos vagões. Afirma ainda que
chamou a atenção do chefe de trem, Edgar Simas, sobre o excesso de passageiros.
O chefe acionou um policial que conseguiu fazer descer os
passageiros excedentes. Porém, segundo o maquinista, a medida não funcionou, já
que com o trem em movimento, ocorreu nova invasão. Outra vez, João Claro
denunciou ao chefe de trem, mas nenhuma providência foi tomada.
O maquinista relatou ainda que a parada que antecedeu a
subida de uma ladeira e posterior descida em velocidade foi motivada por um
problema na última classe, que precisou de reparo – o conserto foi feito pelo
funcionário do trem responsável pela tarefa, o foguista.
Após iniciar a descida, outra vez o maquinista percebe o
mesmo problema, a interrupção da torneira de ar, causando o isolamento dos
freios de ar comprimido. João Claro acusa a superlotação como causa para o
problema, já que os passageiros que viajavam em pé podiam ter provocado a
obstrução.
Em depoimento, o maquinista auxiliar João Moura Cabral
confirma o relato de Claro. Ele conta que em certo momento da viagem notou que
a torneira da bomba de ar achava-se aberta, fechando-o logo em seguida. Outro
maquinista presente no Suburbano, Manoel Leite da Silva, também testemunha
essas informações.
Por fim, em seu depoimento João Claro assegura que a
impossibilidade de controlar a velocidade da locomotiva e a existência de
muitas pedras nos trilhos após uma curva provocaram o descarrilamento.
Em uma nova perícia realizada pelos mesmos engenheiros, a
pedido e sob o acompanhamento dos advogados de Claro, percebeu-se que a
locomotiva não possuía nenhuma baliza de freios, comprometendo certamente a
qualidade da frenagem – considerando a quantidade e o peso dos vagões.
O relatório policial chegou a ponderar que não foram
“encontrados nos autos provas suficientes para criminar dolosa ou culposamente
o maquinista”. Apesar disso, o próprio relatório determina a investigação da
vida pregressa do maquinista.
UM COMUNISTA NOS TRILHOS
João Claro tinha 37 anos na data do acidente. Casado, morava
com a família no bairro Siqueira Campos, em Aracaju. Era negro, o que no ano de
1946 significava ainda mais do que hoje.
Jornais do Rio de Janeiro apontaram grande número de vítimas
e se apressaram em responsabilizar João Claro dos Santos pelo acidente.
Abaixo,
à esquerda, no sentido horário: Jornal A noite, de 22/03/1946; Diário de
Notícias, 21/03/1946; Gazeta de Notícias, 21/03/1946; e Jornal Diário da Noite,
19/03/1946.
Começou a trabalhar aos 13 anos na oficina da Viação Férrea
como aprendiz de ajustador mecânico, sem receber nenhum salário durante o
primeiro ano. Progrediu nos quadros da empresa até receber a formação de
maquinista, em 1936, dez anos antes da tragédia de Pedrinhas.
Além de fundador da União Espírita Sergipana, João Claro foi
o presidente da União Beneficente dos Ferroviários, uma espécie de sindicato
dos funcionários da Viação Férrea. Sua atuação política junto aos trabalhadores
e outros setores sociais o levou a ser eleito vereador de Aracaju pelo Partido
Comunista.
Apesar da investigação sobre a vida do maquinista, nada foi
encontrado que comprometesse sua reputação.
Por outro lado, diversos fatores contribuíram para o
desastre. A Viação Férrea Federal Leste Brasileiro poderia ter sido melhor
investigada por causa da situação em que se encontravam seus veículos, assim
como pela superlotação do Suburbano.
Segundo os relatos da imprensa, os trilhos também não
apresentavam condições adequadas, fator que talvez não influenciasse no
processo por conta da conclusão do laudo pericial – que garantiu estar em bom
estado pelo menos o trecho onde ocorreu o acidente. Mas o poder público também
devia ser investigado, entre os responsabilizados pela tragédia, pois o
controle da superlotação a partir da estação ferroviária de Aracaju era tarefa
dos agentes públicos.
No entanto, apesar de os indícios apontarem múltiplas
responsabilidades, João Claro foi o único condenado no processo criminal. A
Promotoria da cidade de Laranjeiras denunciou João Claro como causador do
“horrôroso desastre”, sendo o processo encaminhado para a Comarca de Aracaju.
Embora seja conhecida a condenação de João Claro, o
pesquisador Luiz Paulo não conseguiu incluir a sentença em seu trabalho, pois o
documento havia sido retirado do processo-crime.
Este não foi o único desaparecimento de documento sobre o
caso. O historiador denuncia que, após ter defendido sua dissertação, voltou ao
Arquivo Judiciário para colher mais informações e, para sua surpresa, o próprio
processo-crime havia desaparecido. “Não está mais na pasta em que eu
pesquisei”, afirma.
“Algumas partes do processo você não conseguia encontrar”,
completa Luiz. O historiador especula que, talvez pela repercussão que o caso
teve, algumas pessoas ou setores prefiram que a conclusão do processo não seja
evidenciada.
RACISMO
Luiz Paulo Bezerra foca suas pesquisas na história
pós-abolicionista do povo negro no Brasil – período que sucedeu a libertação
dos negros escravizados, que ocorreu em 1888. Ele acredita que o racismo foi
preponderante para a condenação de João Claro.
João Claro dos Santos foi o único condenado na tragédia do
Suburbano.
Foto anexada ao processo
“O protagonismo negro, ser negro naquela época, levava ainda
dificuldade para pessoas que tentavam ultrapassar certos limites; João Claro
foi um desses”, explica Luiz, “um personagem importante para a história de
Sergipe, no sentido do que um negro poderia na década de 1940”.
A pressão dos jornais e a pressa da população, por se
encontrar um responsável pelo desastre, foram fatores que, combinados com o
racismo, levaram o maquinista a ser o “condenado conveniente”, acredita o
historiador. “Um negro, comunista, líder de centro espírita… de repente podia
incomodar”, considera Luiz.
Outro obstáculo para preencher algumas lacunas na pesquisa
foi a impossibilidade de conversar com familiares de João Claro.
“Não consegui ter acesso à família”, diz. “Possivelmente
pela repercussão negativa, porque, imagine: um negro, na década de 1940, que
conseguiu ter acesso a coisas que dificilmente conseguiria ter… e de repente
tem sua vida destruída por causa de um acidente…”, reflete o pesquisador,
sugerindo a possibilidade de haver um sentimento, por parte dos descendentes de
Claro, de ter havido injustiça na condenação.
O cientista compara o caso de João Claro ao chamado “crime
do restaurante chinês”, que aconteceu em São Paulo na década de 1930. Um casal
de chineses, donos de um restaurante, e dois funcionários foram brutalmente
assassinados. Um ex-garçom foi condenado pelos homicídios. O historiador Boris
Fausto publicou um livro sobre o massacre, também analisando o processo-crime e
a atuação da imprensa.
Para Luiz, quando as evidências são nebulosas, existe uma
tendência – que pode ser reforçada pelos meios de comunicação – de condenar
aqueles personagens já censurados pela própria sociedade.
RUA VEREADOR JOÃO CLARO
Desde 1954, ou seja, quase dez anos após o acidente, a rua
Sergipe, no bairro Siqueira Campos, passou a se chamar Rua Vereador João Claro.
É o endereço do Centro Espírita Irmãos Fêgo, na época comandada por Claro e que
continua em atividade.
Para o historiador Luiz Paulo, a homenagem é mais um indício
da inocência do maquinista. “Não seria nada ético e bem visto pela população
uma rua ser denominada em nome de um criminoso que causou tantas mortes”,
reflete.
PARA SABER MAIS
A dissertação intitulada “Nos trilhos da morte: tragédia
ferroviária, debate judicial e racismo em Sergipe nos anos 40” pode ser
acessada, na íntegra, no Repositório Institucional da UFS
* As falas dos personagens da tragédia foram transcritas
como constam nos autos do processo, inclusive com a grafia da época
Texto e imagens reproduzidos do site: expressaosergipana.com.br
Eu me lembro como se fosse hoje: tudo era transportado por trem e a pessoa perdeu ele, não arranjava outro meio porq o rodoviário nas épocas era super restrito. Muito dificil nas épocas. Quem morava em cidades interioranas nas épocas, como Itabaiana e tal, passou das 6 da manhã, tava dificil arrumar outro transporte. Dificilmente se conseguia.
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