Publicado originalmente no Facebook/Lilian Rocha, em 08.11.17.
A Aldrava de Bronze.
Por Lilian Rocha.
Uma das coisas que mais me fascinavam naquela casa era
aquela campainha. Na verdade, era uma aldrava de bronze, toda trabalhada. Para
"tocar", a gente segurava a parte pendente e batia com ela na porta.
Coisa que eu só via em filmes, na porta de mansões antigas e aristocráticas.
Mas era exatamente assim a casa de Dr. Augusto Leite. Um suntuoso
palacete, que parecia ter saído das páginas de um romance, situado na esquina
da avenida Barão de Maruim com a rua Itabaiana. Na esquina em frente, ficava o
armazém Serrano, onde eu costumava comprar balas de café, antes de ir para o
colégio. Sempre que eu ia ao armazém, ficava de olho grudado naquela campainha,
doida pra tocar nela.
Um dia, não resisti. Transpus rapidamente o jardinzinho que
circundava a casa, subi apressada os poucos degraus da escada circular que
levava até a porta, suspendi os pés para alcançar o pesado pendente de bronze e
bati com vontade na porta. Depois, antes que alguém viesse abrir a porta, saí
correndo dali, assustada com minha própria travessura...
Poucos anos depois, na calada da noite, aquela linda casa
veio ao chão. Em seu lugar, foi construída mais uma agência da Caixa Econômica,
com telhado azul de zinco e sem nenhum glamour. Sempre que passo por ali,
olho-a com certo desprezo, pois sei que ela não merecia ocupar aquele espaço
tão nobre...
Eu morava no primeiro trecho da rua Boquim, bem pertinho
dali. Numa das esquinas, ficava o quartel de polícia e na outra, a praça
Camerino. Logo que nos mudamos para lá, estranhamos a corneta do quartel que
tocava quase toda hora, mas logo nos acostumamos, e os toques do corneteiro passaram
a fazer parte de nossa rotina, como se nos protegessem. E cada vez que ouvíamos
"Catita, cadê seu chapéu? Tá na cabeça do coronéu...", dava uma
sensação gostosa de saber que estávamos em casa...
Nossa rua era repleta de casas e de vizinhos. Em frente à
nossa, numa casa grande e bem bonita, morava Dr. Lauro Porto, médico otorrino.
Depois vinha a casa do simpático Coronel Narciso, que gostava de passar o fim
de tarde debruçado na sua pequena varanda, vendo o movimento da rua. Na casa ao
lado da nossa, morava a família do Sr.Horácio Goes, e do outro lado, Hortência
e Zelito Machado. Ambas as casas eram bem movimentadas. ''Seu' Horácio era
prefeito de Riachão do Dantas e sua esposa, Creusa, atuava verdadeiramente como
a primeira dama. Era uma mulher forte, dinâmica e generosa, que empregou toda a
sua vida em prol dos mais necessitados. De manhã bem cedinho, a varanda de sua
casa já estava repleta de mocinhas que vinham de Riachão à procura de emprego.
E d.Creuza arranjava emprego para todas, geralmente em casas de família, como
arrumadeiras ou como enfermeiras, para cuidar dos bebês das mães de primeira
viagem. Acho que quase todo mundo de Aracaju daquele tempo tem um sentimento de
gratidão por ela.
Já a casa de Hortência e Zelito era mais movimentada nos fins-de-semana.
Sempre muito animados, viviam comemorando tudo e as festinhas aconteciam,
geralmente, na varanda do lado da casa que dava bem na janela do meu quarto.
Noites sem fim dormi ao som de músicas deliciosas, escolhidas a dedo por
Augusto César, seu filho mais velho, hoje um dos médicos mais conceituados da
cidade...
Mas de toda aquela redondeza, acho que um dos meus lugares
preferidos era a Praça Camerino, onde ficavam o edifício Liberdade e a banca de
jornal de Nehemias. No Edifício Liberdade, bem no primeiro andar, morava
Corina, minha amiga inseparável daquele tempo. Estudávamos juntas no Colégio
Arquidiocesano e quase todas as noites depois do jantar, eu ia pra casa dela
jogar baralho. Sentávamos no chão da área de serviço e ali nos deixávamos ficar
jogando "mau-mau", uma das maiores delícias da minha adolescência...
O Edifício Liberdade também guardava um dos maiores recantos
pra mim. Era um prédio de 12 andares, mas depois do 12º, havia uma escada que
dava para um terraço enorme e vazio. Vezes sem conta, subi até lá só para ver o
sol se escondendo por detrás dos telhadinhos vermelhos da cidade, deixando o
céu todo alaranjado... Era lindo de se ver!
Nossa casa hoje tem 47 anos. Com exceção do portão de ferro,
tudo nela ainda é original. Sobretudo as lembranças. Foi uma casa que nos viu
crescer, que viu nascer nossos filhos e que assistiu, silenciosa, à enorme
transformação causada pelo tempo. Foram-se dr. Lauro Porto, o coronel Narciso,
seu Horácio, d.Creusa, Zelito Machado e há poucos meses, minha mãe. A casa de
seu Horácio foi derrubada e transformada num estacionamento, e na de Dr. Lauro
Porto funciona hoje uma repartição pública. A varandinha do coronel Narciso
ainda continua intacta, porém sempre vazia. A casa de Hortência, que foi depois
transformada numa das lojas mais movimentadas de Aracaju, também fechou as
portas. E até o armazém Serrano, das minhas inesquecíveis balas de café, hoje é
apenas um monte de escombros.
Da porta de casa ainda consigo avistar o terraço do meu
querido edifício Liberdade, mas há muito que alguém fechou aquele vão e o
transformou em alguma outra coisa habitável. Quando passo em frente ao prédio,
meus olhos ainda buscam o primeiro andar e minhas lembranças se perdem, vendo
as cortinas do antigo quarto de Corina balançando contra o vento que entra pela
janela aberta. Só o porteiro continua o mesmo. Tenho vontade de cumprimentá-lo,
mas já não sei o nome dele.
A um canto da praça, a banca de Nehemias também permanece,
junto com ele, hoje já bem envelhecido.
Não sei por que hoje resolvi voltar ali. Não sei por que
resolvi transpor novamente aquele pequeno jardim e bater contra a porta aquela
pesada aldrava de bronze. Eu não sabia que dessa vez aquela porta enorme ia se
abrir e trazer de volta tantas saudades que eu julgava esquecidas...
Texto e imagem reproduzidos da Fanpage/Facebook/Lilian Rocha.
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