sexta-feira, 10 de novembro de 2017

A Aldrava de Bronze


Publicado originalmente no Facebook/Lilian Rocha, em 08.11.17.

A Aldrava de Bronze.
Por Lilian Rocha.

Uma das coisas que mais me fascinavam naquela casa era aquela campainha. Na verdade, era uma aldrava de bronze, toda trabalhada. Para "tocar", a gente segurava a parte pendente e batia com ela na porta. Coisa que eu só via em filmes, na porta de mansões antigas e aristocráticas.

Mas era exatamente assim a casa de Dr. Augusto Leite. Um suntuoso palacete, que parecia ter saído das páginas de um romance, situado na esquina da avenida Barão de Maruim com a rua Itabaiana. Na esquina em frente, ficava o armazém Serrano, onde eu costumava comprar balas de café, antes de ir para o colégio. Sempre que eu ia ao armazém, ficava de olho grudado naquela campainha, doida pra tocar nela.

Um dia, não resisti. Transpus rapidamente o jardinzinho que circundava a casa, subi apressada os poucos degraus da escada circular que levava até a porta, suspendi os pés para alcançar o pesado pendente de bronze e bati com vontade na porta. Depois, antes que alguém viesse abrir a porta, saí correndo dali, assustada com minha própria travessura...

Poucos anos depois, na calada da noite, aquela linda casa veio ao chão. Em seu lugar, foi construída mais uma agência da Caixa Econômica, com telhado azul de zinco e sem nenhum glamour. Sempre que passo por ali, olho-a com certo desprezo, pois sei que ela não merecia ocupar aquele espaço tão nobre...

Eu morava no primeiro trecho da rua Boquim, bem pertinho dali. Numa das esquinas, ficava o quartel de polícia e na outra, a praça Camerino. Logo que nos mudamos para lá, estranhamos a corneta do quartel que tocava quase toda hora, mas logo nos acostumamos, e os toques do corneteiro passaram a fazer parte de nossa rotina, como se nos protegessem. E cada vez que ouvíamos "Catita, cadê seu chapéu? Tá na cabeça do coronéu...", dava uma sensação gostosa de saber que estávamos em casa...

Nossa rua era repleta de casas e de vizinhos. Em frente à nossa, numa casa grande e bem bonita, morava Dr. Lauro Porto, médico otorrino. Depois vinha a casa do simpático Coronel Narciso, que gostava de passar o fim de tarde debruçado na sua pequena varanda, vendo o movimento da rua. Na casa ao lado da nossa, morava a família do Sr.Horácio Goes, e do outro lado, Hortência e Zelito Machado. Ambas as casas eram bem movimentadas. ''Seu' Horácio era prefeito de Riachão do Dantas e sua esposa, Creusa, atuava verdadeiramente como a primeira dama. Era uma mulher forte, dinâmica e generosa, que empregou toda a sua vida em prol dos mais necessitados. De manhã bem cedinho, a varanda de sua casa já estava repleta de mocinhas que vinham de Riachão à procura de emprego. E d.Creuza arranjava emprego para todas, geralmente em casas de família, como arrumadeiras ou como enfermeiras, para cuidar dos bebês das mães de primeira viagem. Acho que quase todo mundo de Aracaju daquele tempo tem um sentimento de gratidão por ela.

Já a casa de Hortência e Zelito era mais movimentada nos fins-de-semana. Sempre muito animados, viviam comemorando tudo e as festinhas aconteciam, geralmente, na varanda do lado da casa que dava bem na janela do meu quarto. Noites sem fim dormi ao som de músicas deliciosas, escolhidas a dedo por Augusto César, seu filho mais velho, hoje um dos médicos mais conceituados da cidade...

Mas de toda aquela redondeza, acho que um dos meus lugares preferidos era a Praça Camerino, onde ficavam o edifício Liberdade e a banca de jornal de Nehemias. No Edifício Liberdade, bem no primeiro andar, morava Corina, minha amiga inseparável daquele tempo. Estudávamos juntas no Colégio Arquidiocesano e quase todas as noites depois do jantar, eu ia pra casa dela jogar baralho. Sentávamos no chão da área de serviço e ali nos deixávamos ficar jogando "mau-mau", uma das maiores delícias da minha adolescência...

O Edifício Liberdade também guardava um dos maiores recantos pra mim. Era um prédio de 12 andares, mas depois do 12º, havia uma escada que dava para um terraço enorme e vazio. Vezes sem conta, subi até lá só para ver o sol se escondendo por detrás dos telhadinhos vermelhos da cidade, deixando o céu todo alaranjado... Era lindo de se ver!

Nossa casa hoje tem 47 anos. Com exceção do portão de ferro, tudo nela ainda é original. Sobretudo as lembranças. Foi uma casa que nos viu crescer, que viu nascer nossos filhos e que assistiu, silenciosa, à enorme transformação causada pelo tempo. Foram-se dr. Lauro Porto, o coronel Narciso, seu Horácio, d.Creusa, Zelito Machado e há poucos meses, minha mãe. A casa de seu Horácio foi derrubada e transformada num estacionamento, e na de Dr. Lauro Porto funciona hoje uma repartição pública. A varandinha do coronel Narciso ainda continua intacta, porém sempre vazia. A casa de Hortência, que foi depois transformada numa das lojas mais movimentadas de Aracaju, também fechou as portas. E até o armazém Serrano, das minhas inesquecíveis balas de café, hoje é apenas um monte de escombros.

Da porta de casa ainda consigo avistar o terraço do meu querido edifício Liberdade, mas há muito que alguém fechou aquele vão e o transformou em alguma outra coisa habitável. Quando passo em frente ao prédio, meus olhos ainda buscam o primeiro andar e minhas lembranças se perdem, vendo as cortinas do antigo quarto de Corina balançando contra o vento que entra pela janela aberta. Só o porteiro continua o mesmo. Tenho vontade de cumprimentá-lo, mas já não sei o nome dele.

A um canto da praça, a banca de Nehemias também permanece, junto com ele, hoje já bem envelhecido.

Não sei por que hoje resolvi voltar ali. Não sei por que resolvi transpor novamente aquele pequeno jardim e bater contra a porta aquela pesada aldrava de bronze. Eu não sabia que dessa vez aquela porta enorme ia se abrir e trazer de volta tantas saudades que eu julgava esquecidas...

Texto e imagem reproduzidos da Fanpage/Facebook/Lilian Rocha.

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