Publicado originalmente no blog LEC, em 19/08/2017
O vôo das cardinheiras e a sombra do corvo
Por Luiz Eduardo Costa.
Fazia mais de dez anos que elas não apareciam. Finalmente,
com as chuvas e a caatinga verdejante, os matos rasteiros exibindo fartas
sementinhas, elas, as cardinheiras, reapareceram. E vieram, sem exageros, às
centenas de milhares. Nos sertões de Sergipe passam, voando em todas as
direções os bandos compactos, impressionantemente numerosos das pombinhas
velozes e inquietas.
Eram tão familiares aos nordestinos sertanejos, mas
rarearam, talvez espantadas pelo rigor das secas, pelo cheiro de queimado da
caatinga virando carvão. A ciência deu a elas um nome vistoso: Zenaida
auriculata, e a dividiu em cinco subespécies: a que vive exclusivamente aqui
pelo nordeste é a Zenaida auriculata noronha. Mas os apelidos, inúmeros, quem
lhes botou foi o matuto encantado com aquelas nuvens de vida exuberante,
passando sobre suas cabeças.
Vejamos: cardinheira, arribação, avoante, pararí, pomba-do-sertão,
pomba-de-bando, cardigueira, jurití-carregadeira, ribaçã, este último escolhido
por Gonzaga para incluir a esquiva e singular pomba nas suas músicas-hinos,
sensivelmente telúricas. Depois da Asa-Branca, a ribaçã é a ave mais celebrada
do nordeste. As arribaçãs preferem o semiárido. Fazem os ninhais despejando
displicentemente seus ovos onde existam malhadas.
Desta vez escolheram os pastos de Santa Rosa do Ermírio em
Poço Redondo. Os ovos , aos milhares, ficam espalhados pelo chão sem serem chocados,
e dos que escapam dos predadores, caracarás, cancãos, teiús, raposas,
jaguatiricas, guaxinins, saem os ¨brugelos¨ que emplumam rápido, e em 15 dias
voam. Essa capacidade extrema de resistir e proliferar faz das avoantes um
presente ¨caído do ceu¨, e que chega, muitas vezes, quando a fome atormenta o
nordestino, desta vez, consequência do desemprego e redução dos programas
sociais.
As ribaçãns estão sendo intensivamente caçadas. As pessoas
saem a fachear à noite com lanternas e varas procurando-as na caatinga. O
extermínio é enorme. Há quem diga, cheio de orgulho de caçador, que abate mais
de mil aves por noite. Uma avoante pesa uns 130 gramas, assim, três delas,
comidas com farinha seca, matam a fome de uma pessoa. São também vendidas a 50
centavos para se transformarem em tira-gosto, custando, nos botequins, de 70
centavos a um real.
As cardinheiras, aves monogâmicas, formam casais
permanentes. Entre os irracionais a monogamia ainda subsiste. Os papagaios e
periquitos são definitivamente monogâmicos, quando um do casal morre, o outro
fica viúvo pelo resto da vida; já a cardinheira, se um dos dois morre, logo
outro casal se forma. Talvez, esse seja o segredo da sua impressionante
capacidade de reproduzir-se. Nunca antes, morreram tantas cardinheiras, e nunca
antes, tanta gente teve a fome saciada com a proteína que chegou batendo asas.
Talvez essa seja a última grande revoada das cardinheiras.
Dos bandos enormes muito pouco restará, porque o sertanejo empobreceu mais
ainda, e tem fome. Os filhotes são alimentados pelos pais que regurgitam o
alimento, mas, quando o casal desaparece os ¨bruguelos¨ não sobrevivem.
No ninhal de Santa Rosa do Ermírio, o mau cheiro dos
¨bruguelos¨ que morreram de inanição, na orfandade dos pais exterminados, se
espalha até aonde o vento o transporta. Tanto já tratamos aqui de avoantes, e
então, onde entraria a sombra do corvo? O poema The Raven, O Corvo, é um dos
mais traduzidos em línguas diversas, tarefa dificílima.
No Brasil há algumas traduções, todavia, a melhor é a que
foi preciosamente feita por Machado de Assis. O autor do célebre poema, o
americano Edgard Alan Poe foi um intelectual atormentado pela angústia e os
desencontros de uma vida sem rumo e desregrada. O Corvo que em noite escura e
fria entra no quarto onde o poeta não concilia o sono, é a própria
representação dos maus presságios, das desgraças que se avizinham.
O poeta tenta afastar ou exorcisar a malsinada, diabólica
ave soturna, mas o corvo permanece, acaba por incorporar-se a um busto de
mármore da deusa Palas. É uma espécie de maldição que não pode ser contida. A
sombra fatídica de um corvo devastador, atrevido e diabólico, e empoleirado em
Brasília, espalhou-se pelo Brasil. Debaixo dessa sombra nem as prolíficas
cardinheiras escapam.
Publicado originalmente no blogluizeduardocosta.com.br
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