quinta-feira, 21 de setembro de 2017

O vôo das cardinheiras e a sombra do corvo


Publicado originalmente no blog LEC, em 19/08/2017

O vôo das cardinheiras e a sombra do corvo
Por Luiz Eduardo Costa.

Fazia mais de dez anos que elas não apareciam. Finalmente, com as chuvas e a caatinga verdejante, os matos rasteiros exibindo fartas sementinhas, elas, as cardinheiras, reapareceram. E vieram, sem exageros, às centenas de milhares. Nos sertões de Sergipe passam, voando em todas as direções os bandos compactos, impressionantemente numerosos das pombinhas velozes e inquietas.

Eram tão familiares aos nordestinos sertanejos, mas rarearam, talvez espantadas pelo rigor das secas, pelo cheiro de queimado da caatinga virando carvão. A ciência deu a elas um nome vistoso: Zenaida auriculata, e a dividiu em cinco subespécies: a que vive exclusivamente aqui pelo nordeste é a Zenaida auriculata noronha. Mas os apelidos, inúmeros, quem lhes botou foi o matuto encantado com aquelas nuvens de vida exuberante, passando sobre suas cabeças.

Vejamos: cardinheira, arribação, avoante, pararí, pomba-do-sertão, pomba-de-bando, cardigueira, jurití-carregadeira, ribaçã, este último escolhido por Gonzaga para incluir a esquiva e singular pomba nas suas músicas-hinos, sensivelmente telúricas. Depois da Asa-Branca, a ribaçã é a ave mais celebrada do nordeste. As arribaçãs preferem o semiárido. Fazem os ninhais despejando displicentemente seus ovos onde existam malhadas.

Desta vez escolheram os pastos de Santa Rosa do Ermírio em Poço Redondo. Os ovos , aos milhares, ficam espalhados pelo chão sem serem chocados, e dos que escapam dos predadores, caracarás, cancãos, teiús, raposas, jaguatiricas, guaxinins, saem os ¨brugelos¨ que emplumam rápido, e em 15 dias voam. Essa capacidade extrema de resistir e proliferar faz das avoantes um presente ¨caído do ceu¨, e que chega, muitas vezes, quando a fome atormenta o nordestino, desta vez, consequência do desemprego e redução dos programas sociais.

As ribaçãns estão sendo intensivamente caçadas. As pessoas saem a fachear à noite com lanternas e varas procurando-as na caatinga. O extermínio é enorme. Há quem diga, cheio de orgulho de caçador, que abate mais de mil aves por noite. Uma avoante pesa uns 130 gramas, assim, três delas, comidas com farinha seca, matam a fome de uma pessoa. São também vendidas a 50 centavos para se transformarem em tira-gosto, custando, nos botequins, de 70 centavos a um real.

As cardinheiras, aves monogâmicas, formam casais permanentes. Entre os irracionais a monogamia ainda subsiste. Os papagaios e periquitos são definitivamente monogâmicos, quando um do casal morre, o outro fica viúvo pelo resto da vida; já a cardinheira, se um dos dois morre, logo outro casal se forma. Talvez, esse seja o segredo da sua impressionante capacidade de reproduzir-se. Nunca antes, morreram tantas cardinheiras, e nunca antes, tanta gente teve a fome saciada com a proteína que chegou batendo asas.

Talvez essa seja a última grande revoada das cardinheiras. Dos bandos enormes muito pouco restará, porque o sertanejo empobreceu mais ainda, e tem fome. Os filhotes são alimentados pelos pais que regurgitam o alimento, mas, quando o casal desaparece os ¨bruguelos¨ não sobrevivem.

No ninhal de Santa Rosa do Ermírio, o mau cheiro dos ¨bruguelos¨ que morreram de inanição, na orfandade dos pais exterminados, se espalha até aonde o vento o transporta. Tanto já tratamos aqui de avoantes, e então, onde entraria a sombra do corvo? O poema The Raven, O Corvo, é um dos mais traduzidos em línguas diversas, tarefa dificílima.

No Brasil há algumas traduções, todavia, a melhor é a que foi preciosamente feita por Machado de Assis. O autor do célebre poema, o americano Edgard Alan Poe foi um intelectual atormentado pela angústia e os desencontros de uma vida sem rumo e desregrada. O Corvo que em noite escura e fria entra no quarto onde o poeta não concilia o sono, é a própria representação dos maus presságios, das desgraças que se avizinham.

O poeta tenta afastar ou exorcisar a malsinada, diabólica ave soturna, mas o corvo permanece, acaba por incorporar-se a um busto de mármore da deusa Palas. É uma espécie de maldição que não pode ser contida. A sombra fatídica de um corvo devastador, atrevido e diabólico, e empoleirado em Brasília, espalhou-se pelo Brasil. Debaixo dessa sombra nem as prolíficas cardinheiras escapam.

Publicado originalmente no blogluizeduardocosta.com.br

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