Professor Antônio Lindivaldo de Souza
Publicado originalmente no site do Cinform, em 14 de março de 2018
Do Santo Antônio ao 17 de Março
Por Henrique Maynart
Cajueiros dos papagaios em nome tupi, cidade-porto. Há exatos 162 anos e 360 dias, data de
publicação desta reportagem, a nova capital do estado desembarcava na banda
direita do Rio Sergipe para escoar o açúcar do Cotinguiba em direção ao mundo,
mirando as ondas do mar. Os dados do IBGE apontam que cerca de 650 mil pessoas
habitam o território da sobrevivência em exatos 3.140 quilômetros quadrados,
formando uma perna de bailarina entre o Rio Vaza Barris, o Rio Sergipe e o mar
aberto da Boca da Barra. Centenária,
moderna e excludente, Aracaju baila no tablado da topografia oficial de
Sergipe.
Dentre os 39 bairros de Aracaju, abordaremos a história, os
dilemas e possibilidades do Santo Antônio e 17 de Março, o primeiro e o último,
o Norte e o Sul, o início, o fim e o meio da capital sergipana.
Aracaju não nasceu da colina
O Santo Antônio surge antes de Aracaju, mas a colina não
cabia nos planos da capital. O povoado de Santo Antônio do Cotinguiba estava
sob tutela da freguesia de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, atual município
de Socorro, até meados da segunda metade do século XIX. Registros do século
XVIII já faziam referência ao povoado. Planejada para servir de escoamento à
produção açucareira do Vale do Cotinguiba, Aracaju foi projetada para a planície,
seu marco zero se encontra na Praça General Valadão. Tanto é que a Estrada Nova
que ligaria a sede ao povoado, que atualmente é a Avenida João Ribeiro, só
ficaria pronta dois anos depois. “Mesmo ladrilhando a Estrada Nova, a
comunicação do bairro com a região central da cidade só se dará a partir de
1915, com a chegada dos bondes”, afirma o historiador Antônio Lindivaldo de
Souza.
Em 1862 é construído o primeiro cemitério da cidade, que
viria a se chamar Santa Isabel em 1921, em homenagem à morte da ex-monarca. A
Capela do Santo Antônio seria elevada à condição de paróquia em 1915. Assim
como os demais bairros da Zona Norte e Oeste de Aracaju, o Santo Antônio
serviria de abrigo aos refugiados do progresso, aos que não caberiam no
Quadrado de Pirro.
Para o comunicador popular Osvaldo Neto, estudioso do
bairro, a divisão social do Santo Antônio se dá entre os negros fugidos, povos
remanescentes, operários e os casarões das famílias mais abastadas de Aracaju
nas margens das avenidas. “Ao lado oeste moravam aqueles que fugiam da seca do
Alto Sertão Sergipano. Já no lado leste, na fronteira com o Bairro Industrial,
próximo a Mata dos Caboclos, a Matinha e as nascentes do Mané Preto, habitavam
os negros libertos, os operários das fábricas do Bairro Industrial e
descendentes de índios”, afirma.
Rua Muribeca, nº 4. O Grupo de Teatro Imbuaça chegou ao
bairro em 1980, dois anos depois da fundação do grupo. Na segunda metade dos
anos 80 eles se instalam na sede do Diretório Central dos Estudantes da UFS,
retornando definitivamente ao bairro em 1991. O bairro de pouco mais de 12 mil
habitantes está mesclado à história do grupo. O projeto Mané Preto, que oferece
oficinais de música, dança e teatro para a comunidade, é um dos cordões
umbilicais do grupo ao bairro. “Nós abrigamos peças e ações culturais em nossa
sede, além de atender 25 jovens por ano no Mané Preto. Estamos com este
trabalho há décadas”, afirma Lindolfo Amaral, integrante do grupo. O Imbuaça também ajuda na organização da
fogueira de Santo Antônio, todo 13 de junho.
Ele lamenta o encolhimento de atividades culturais como a
centenária Rua de São João, que vem perdendo espaço nos últimos anos, além do
fechamento dos cinemas da década de 70. “O Cinema Atalaia e o Cinema São
Francisco fazem muita falta na comunidade. A Rua São João diminuiu bastante o
movimento nos últimos anos em virtude dos megaeventos que ocorrem na cidade
durante os festejos juninos”, afirmou.
Ponto de partida
Uma alfândega, uma cadeia, uma mesa de rendas e um quartel.
Este é o marco zero projetado pelo engenheiro militar Sebastião Pirro, sob
influência direta das reformas urbanas em curso nas cidades europeias no século
XIX, como a reforma de Paris. A largada da capital sergipana não partia mais da
cruz e da igreja, assim como as cidades erguidas nos tempos da colônia como São
Cristóvão e Laranjeiras, mas partia do comércio, das finanças, do exército e do
cárcere.
“Cidades planejadas no mesmo período, como Teresina, traziam
a cruz como ponto de partida, mas Aracaju trazia os símbolos do que
representavam o progresso na época, dando à nossa cidade características
modernas”, afirma Lindivaldo.
A partir da “Praça da Cadeia”, como era chamada a General
Valadão, foi organizado o Quadrado de Pirro, que consistia em uma área de 1.188
metros divididos em 32 quadras simétricas, com ruas de 13 metros, avenidas de
20 a 25 metros, em três direções: norte, sul e oeste. Em suma, o Centro
Histórico de Aracaju. A prática de aterramentos já era constante naquele
período, sinal que o projeto de cidade não levava em conta os biomas presentes
no território. Em artigo publicado em 2003, o professor Lindivaldo afirma:
“Aterrou vales e elevou-se nos montes de areia. Grandes somas de dinheiro foram
gastas com aterro e esgoto de terrenos baixos e úmidos, para que o projeto
mantivesse a reta.” O caso do
aterramento da Coroa do meio, nos anos 80, e do Jardins, no final dos anos 90,
ilustram este histórico.
Cidade fora do quadrado
Entre 1900 e 1920, a população de Aracaju é duplicada.
Chegavam à capital os refugiados da seca, da ausência de recursos. Para evitar
que a “cidade planejada” fosse contaminada pela elevação populacional, o
legislativo municipal aprovou os chamados “Códigos de Postura”, que consistiam
em um conjunto de regras a serem seguidas por quem quisesse residir na área do
Quadrado de Pirro. Prevendo requisitos de fachada e construção, como a
exigência de casas de alvenaria, os Códigos de Postura aprovados em 1910, 1912
e 1926 constituíram uma “limpeza social”, de acordo com Osvaldo Neto.
“E quem é que tinha condição de construir casa de alvenaria
naquela época sem ajuda do Estado? Os Códigos de Postura serviram pra expulsar
a população mais pobre da área privilegiada”, ratifica Osvaldo.
Excluída do quadrado, restava ao setor mais espoliado da
população o que o historiador Fernando Figueiredo Porto nominou de regiões do
“arrebalde”. O “arrebalde” compreendia
as regiões do Morro do Bomfim – na Rodoviária Velha -, no Carro Quebrado, atual
São José, no Aribé, atual Siqueira Campos, no Santo Antônio, e demais
territórios da Zona Norte e Oeste, a coxa da bailarina de Aracaju. O Morro do
Bomfim era o ponto mais próximo da região central de Aracaju a acolher os
refugiados do Código de Postura. Após ampla campanha, sob alegação de combate à
prostituição e à delinquência, o Morro do Bomfim sofreu um despejo em meados da
década de 50, no governo de Leandro Maciel, que desocupou cerca de 1200 casas.
Seus refugiados subiram o morro em direção aos bairros Cirurgia, Getúlio
Vargas, Siqueira Campos, Cidade Nova, dentre outros.
Nas costas do novo bairro
Um pulo de 60 anos no tempo. Aracaju, 17 de março de 2012. O
então prefeito Edvaldo Nogueira (PCdoB) inaugura o mais novo bairro da cidade
nas imediações do Santa Maria, na Zona Sul. Cerca de 3.500 unidades
habitacionais construídas em parceria com o Governo Federal. Sem creche, sem
esgotamento e macrodrenagem, sem Unidade de Saúde, sem escola e com
pavimentação parcial. De acordo com Karina Drumond, diretora do Conselho das
Associações de Moradores dos Bairros Aeroporto, Jabotiana e Zona de expansão de
Aracaju (Combaze) o bairro não foi entregue nas condições ideais.
“Foi legalmente autorizado, mas não atendia a exigência do
governo e a segunda etapa não tinha esgotamento, drenagem e água. Até hoje a
segunda etapa do 17 de Março não tem esgotamento”, denuncia.
José Firmo, integrante do Fórum em Defesa da Grande Aracaju,
atenta para os impactos socioambientais da construção do bairro. “O 17 de Março
foi construído numa região frágil, porque é uma região de nascente, o que é
preocupante. Aquele não seria o local ideal para construir um bairro.”
A Escola Municipal de Ensino Infantil Dr. José Calumby Filho
foi inaugurada em junho de 2016. De acordo com informações da Secretaria
Municipal de Educação (Semed), a creche atende 200 crianças no bairro. O
morador do bairro 17 de Março e militante do Movimento de Luta Por Moradia
Erílio Bispo, rebate este dado. “Hoje nós temos no máximo 180 crianças
atendidas na creche, que é um número grande, mas que ainda não atende a
demanda”.
O bairro não conta com uma Unidade de Saúde até então. A
comunidade é atendida nas unidades do Santa Maria e Santa Tereza. “Tivemos que
ir á Justiça em 2015 pra garantir que o poder público municipal se
comprometesse em construir uma Unidade de Saúde no bairro”, alega Karina
Drummond. A Secretaria Municipal de Saúde de Aracaju (SMS) comunicou à
reportagem que já estão em curso as obras da Unidade de Saúde, orçadas no valor
de R$ 1.500.841,74, sendo que R$ 700 mil deste montante vindos do Ministério da
Saúde.
Mão de obra local
“E quem é que trabalha nas obras do bairro? As construtoras
e empresas já chegam com equipe formada, elas não aproveitam a mão de obra da
comunidade, com tanta gente desempregada no bairro querendo trabalhar, querendo
oportunidade. A gente acha isso errado”, afirma Erílio Bispo.
A assessoria da SMS afirma que o projeto da maternidade do
bairro está sob análise da Emurb. A previsão da abertura de licitação é para
fevereiro de 2019, se todos os trâmites seguirem sem contratempos.
Erílio também demonstra preocupação com as obras do Canal do
Santa Maria. “A gente vê a obra andando em ritmo de tartaruga e fica
preocupado, porque está chegando a época de chuva e ninguém quer ficar debaixo
de lama”, lamenta. Ele também ressalta a imensa cratera formada no trecho de
ligação do 17 de Março ao Santa Maria, construído há poucos meses. “Mal ficou
pronto o trecho de ligação, houve um acidente e uma cratera grande ameaça as
pessoas que passam por lá, os carros, os ônibus”, afirma Erílio.
Do Bomfim à Mangabeira
A mangaba, fruto símbolo de Sergipe, dá nome a uma ocupação
de 2 mil barracos de lona que se encontra nas imediações do 17 de Março o
Recanto da Mangabeira. “Assim como o Morro do Bomfim, lá na década de 50, a
Mangabeira não precisa de remoção e sim de políticas públicas de acolhimento”,
afirma José Firmo, do Fórum em Defesa da Grande Aracaju. “Nós clamamos ao poder
público que olhe para aquela comunidade e que uma solução seja encontrada por
ali”, apela Karina, do Combaze.
Além da Mangabeira, o bairro conta com a ocupação 17 de
Dezembro, que conta com 43 famílias, e a ocupação Terra Prometida, que conta
com 148 famílias, de acordo com informações do movimento Luta Popular. Estas
ocupações tiveram suas reintegrações de posse suspensas por 30 dias para
negociação do cadastro do auxílio-moradia.
Dos Códigos de Postura ao Plano Diretor
Diferente dos Códigos de Postura do início do século XX, que
eram organizados expressamente para manter a parte indesejada da cidade fora do
quadrado planejado, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) é um
instrumento legal que deve planejar e ordenar o crescimento urbano para
garantir o direito à cidade. O último PDDU da capital é do ano 2000, outro
Plano deveria ter sido encaminhado e votado na Câmara de Vereadores de Aracaju
em 2010.
“Estamos com oito anos de carência, é um absurdo”, lamenta
José Firmo. Uma versão do Plano fora aprovada em 2012, mas o projeto foi
suspenso pela Justiça. Em 2015 o prefeito João Alves chegou a organizar as
audiências e consultas nos territórios, mas não apresentou nenhum projeto ao
Legislativo Municipal. “Precisamos de um Plano Diretor que atenda aos
interesses dos mais pobres, que proteja os biomas como o manguezal, as lagoas
naturais, as dunas, que não atenda exclusivamente aos interesses da especulação
imobiliária. É lei, o município é obrigado a ter”, ratifica Firmo.
Por dias melhores
Centenária, moderna e excludente, Aracaju precisa acolher os
povos do arrebalde, das ocupações populares e remanescentes. Que a diversidade,
a dignidade e a fartura cheguem aos que não couberam, não cabem e não caberão
nos Quadrados de Pirro que rondam a perna de bailarina na borda direita do Rio
Sergipe.
Texto e imagens reproduzidos do site: cinform.com.br
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